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O termo “antes de Cristo” foi abolido do material didático?

Atualizado: 9 de set. de 2020

Nos últimos dias, nosso agente especial MarcBot detectou um conteúdo suspeitíssimo envolvendo um aspecto do estudo da História que nem sempre damos muita atenção: o calendário. Já naturalizamos tanto nosso sistema de contagem dos dias e anos que até esquecemos que ele também tem história. Por isso, o Projeto Detecta checou algumas informações que provocaram grande polêmica em torno de supostas mudanças na forma de apresentar os anos nas datações em materiais didáticos.

A propaganda eleitoral será liberada só a partir do dia 20 de setembro, mas a campanha já está nas ruas; ou melhor: nas redes. E traz o que ela tem de pior: desinformação. Postulantes ou não a um cargo, muitos políticos abusam da internet para difamar os adversários e manter seu eleitorado engajado em torno de polêmicas sem fundamento. Já sacaram que apelar para a religião é uma tática infalível! Os fiéis mais sensíveis ficam alvoroçados com qualquer suposta ameaça a sua fé e acabam colaborando com a campanha. Assim, os políticos mais espertinhos nadam de braçada.


Foi nesse furor pré-eleitoral que, no final de agosto, surgiu um boato de que a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo teria abolido os termos “antes de Cristo” (a.C.) e “depois de Cristo” (d.C.) nos livros didáticos. Esses termos costumam ser usados para diferenciar a contagem dos anos anteriores e posteriores ao nascimento de Jesus Cristo, de acordo com o calendário gregoriano.


O boato repercutiu em sites de direita, perfis de políticos, páginas conservadoras e nos grupos de Whatsapp. Como se pode ver pelos prints abaixo, o tom é quase sempre alarmista. Alguns veículos até procuram dissimular suas intenções com uma linguagem pretensamente jornalística, mas o objetivo quase sempre é alimentar as correntes de postagens que geram engajamento a partir do ataque a um oponente e do pânico dos leitores.

Print de postagem no Facebook - o logotipo do político foi distorcido na imagem para evitar divulgação
Print de postagem no Twitter - o logotipo e a foto do político foram distorcidos na imagem para evitar divulgação
Material de propaganda que circulou pelas redes sociais - o logotipo e o rosto do político autor da postagem foram distorcidos na imagem para evitar divulgação
Print de manchete em site de notícias - o nome do site foi distorcido na imagem para evitar divulgação
Print de manchete em site de notícias - o nome do site foi distorcido na imagem para evitar divulgação
Print de manchete de site de notícias - o nome do site e do autor da matéria foram distorcidos na imagem para evitar divulgação
Print de postagem no Whatsapp - o nome e o telefone do autor da postagem foi ocultado para preservar sua privacidade

Alguns sites e perfis chegaram até a postar um vídeo atribuído à “secretária de Educação”, que teria anunciado a extinção dos termos do material didático. Contudo, há dois problemas. Em primeiro lugar, o governo de São Paulo não tem uma secretária e sim um secretário de Educação, Rossieli Soares da Silva, que acabou tendo que emitir uma nota oficial desmentindo o boato. Em segundo lugar, a pessoa que aparece no vídeo não diz que os termos foram extintos de lugar nenhum. Diante desse comportamento suspeito, a equipe do Projeto Detecta se reuniu para apurar um pouco mais essa história.


Pesquisa


Tudo indica que a origem do boato está realmente no referido vídeo, no qual duas professoras de História conduzem uma aula sobre cidades-Estado gregas. Em dado momento, uma das professoras explica as possíveis nomenclaturas para a contagem dos anos no calendário gregoriano e a opção da Secretaria de Educação pelo uso de “Era Comum” para contemplar todas as religiões. Publicado originalmente no Centro de Mídias da Educação de São Paulo (um canal no Youtube criado pela Secretaria de Educação para disponibilizar aulas online aos estudantes da rede estadual durante a pandemia), o vídeo foi editado propositalmente para gerar alarme nas redes sociais.


Motivadas pelo fanatismo religioso, pela emoção que o tom alarmista das postagens provoca e pela ignorância sobre conhecimentos históricos, muitas pessoas contribuíram para viralizar o boato. Deu super certo! Infelizmente, né? Entre as várias reações, detectamos este desabafo maravilhoso no Whatsapp: “Usamos essa denominação por mais de 2000 anos e agora eles querem mudar. É tudo para destruir o Cristianismo” (grifos do autor), que aparece em um dos prints acima.


Mas como surgiu essa história de “antes de Cristo” e “depois de Cristo”?


A primeira coisa a saber é que essa não é uma criação de Deus, mas sim do clero católico. A segunda coisa é que essa expressão tem bem menos de 2 mil anos, ao contrário do que supõe o whatsapper desinformado. A terceira é que o calendário cristão não é o único existente no mundo. Está a fim de saber mais sobre esse assunto? Então, segue a leitura!


Para começar, podemos lembrar que o calendário cristão tem menos de 500 anos. Ele foi instituído pela Igreja Católica em 1582 por meio da bula Inter Gravissimas, assinada por Gregório XIII, o papa da época. Por causa do nome desse pontífice, o calendário cristão, adotado na maior parte do mundo hoje em dia, ficou conhecido como calendário gregoriano.

Mas qual era o calendário usado pelos cristãos antes do gregoriano? Era o calendário juliano, que já existia muitos séculos antes. Ele foi criado em Roma durante a ditadura de Júlio César, daí o nome pelo qual ficou conhecido. Desenvolvido pelo sábio Sosígenes de Alexandria, o calendário juliano estabeleceu o ano de 365 dias (uma inspiração egípcia), dividido em 12 meses de duração irregular, muito parecido com o nosso calendário atual.


Depois da criação do calendário juliano, a Terra ainda daria quase 50 voltas em torno do Sol antes do nascimento de Jesus de Nazaré. E foi o calendário juliano, com suas variações, que os primeiros seguidores do Cristo usaram por mais tempo ao longo da história.

Meme (autoria desconhecida)

Mas a partir de qual marco os cristãos contavam os anos?


Eles faziam como os demais habitantes do Império Romano: usavam métodos diversos, que podiam variar de acordo com a época e a região, mas métodos diferentes coexistiram ao mesmo tempo e no mesmo lugar, podendo ter como referência a fundação de Roma (anno urbis conditae), a nomeação dos cônsules (como eram conhecidos os governantes na época republicana), o ano em que o Império Romano começou, o início do reinado de um determinado imperador, o início de um papado etc.


Durante muitos séculos, por exemplo, usou-se na Península Ibérica uma contagem dos anos que se iniciava na conquista da Hispânia pelo imperador Augusto (38 a.C. no calendário gregoriano). Essa variante ficou conhecida como “Era de César” ou “Era Hispânica”. Em Portugal, por exemplo, a Era Hispânica foi abolida somente em 1422 (o que equivaleria ao ano hispânico de 1460), por carta régia que instituiu a “Era Cristã”.

A Era Cristã também é conhecida como Anno Gratis (Ano da Graça) ou Anno Domini (Ano do Senhor), que toma o suposto ano de nascimento de Jesus Cristo como marco para iniciar a contagem do tempo. A expressão Anno Domini vem do latim (podendo ser substituída por Anno Domini Nostri Iesu Christi ou “Ano de Nosso Senhor Jesus Cristo”), mas é usada até hoje na língua inglesa. Por isso, é comum vermos a sigla AD (Anno Domini) para os anos posteriores ao nascimento de Cristo, em contraposição a BC (Before Christ), usada para identificar os anos anteriores ao nascimento de Cristo. Seriam, portanto, os equivalentes a “a.C.” (antes de Cristo) e “d.C.” (depois de Cristo) na língua portuguesa.


Mas, afinal, quando surgiu esse tal de Anno Domini?


Bom, ele é bem anterior ao calendário gregoriano. Talvez o primeiro a propor a contagem dos anos a partir do suposto nascimento de Jesus tenha sido um monge chamado Dionísio, o Exíguo, que viveu em Roma no século VI. Seus cálculos, que parecem não ser muito claros sobre a data exata de nascimento de Cristo, foram compilados no ano 525 e deram origem à Tábua Pascal Dionisíaca.


O hábito na época de Exíguo era contar os anos a partir do reinado de Diocleciano, um imperador romano que viveu no século III e se destacou pela perseguição aos cristãos. Essa pode ter sido a motivação para o monge propor a datação dos eventos tendo como referência o nascimento de Cristo. Seja como for, o certo é que a Tábua Pascal Dionisíaca vinha ao encontro das pretensões da Igreja, incomodada com as datações que seguiam o modelo pagão dos romanos, de formular um calendário nos moldes cristãos.


Beda, o Venerável, monge e cronista que viveu entre os séculos VII e VIII, teria sido responsável por popularizar a datação dos eventos a partir do nascimento de Cristo, mas a assimilação pelas várias regiões da Europa ocidental foi lenta e gradual. No século IX, Carlos Magno até tentou, mas não conseguiu padronizar o Anno Domini no continente. Como já vimos, o reino de Portugal só adotou a Era Cristã no século XV.


Ao se referir ao ano 60 antes de Cristo ("ante vero incarnationis dominicae tempus anno sexagesimo"), em sua obra História eclesiástica do povo inglês, escrita em 731, Beda pode ter sido o primeiro a registrar a descrição de um ano como anterior a Jesus Cristo. Podemos considerar que o nosso “antes de Cristo” (a.C.) ou o “Before Christ” (BC) da língua inglesa devem muito à boa receptividade da obra de Beda.


Enfim, sabemos que essas modas demoraram a pegar e a diversidade de calendários era a regra na Europa durante todo o período medieval. A formulação de um calendário cristão foi, na verdade, algo muito menos sacrossanto do que o fanatismo religioso pode supor. Sábios católicos e pagãos, astrônomos e teólogos, governantes locais e sacerdotes da Igreja, textos antigos, conhecimentos milenares sobre os astros, costumes pagãos e tantos outros atores históricos concorreram para se chegar ao que chamamos de calendário gregoriano, que não é nem o único e nem o mais exato dos calendários.

Mesmo após a reforma gregoriana, demorou muito para que a maioria dos novos estados modernos aderissem ao calendário instituído pela Igreja Católica. Fora as variações que permaneceram por séculos depois. Aliás, até hoje o calendário gregoriano não é uma unanimidade nem entre os próprios cristãos. Os ortodoxos ainda se baseiam no calendário juliano e comemoram o Natal no que, para nós, é o dia 7 de janeiro, embora também considerem o nascimento de Cristo como referência para contar os anos.


A reforma gregoriana tampouco suplantou vários outros calendários tão ou mais antigos desenvolvidos por outras culturas não cristãs. Os judeus ainda seguem o calendário judaico, pelo qual estamos no ano 5780. Para os muçulmanos, que seguem o calendário islâmico, acabamos de entrar no ano 1442. Segundo o calendário chinês, estamos no ano do rato. Enfim, esses são apenas alguns exemplos de como são diversas as formas de contar os dias e os anos.


Ah, mas o calendário gregoriano é o mais aceito no mundo todo. Ele é usado nos acordos comerciais e nos acertos geopolíticos entre os países. Sim, é verdade! Mas os cristãos não se orgulhariam dessa hegemonia se soubessem como ela foi construída. Evangelização? Sim e um pouco mais: colonialismos, imperialismos, genocídios, etnocídios e epistemicídios. Mas isso é assunto para outro momento.

É justamente pelo fato de o calendário gregoriano pretender-se universal que, ao longo do tempo, foram propostas expressões alternativas à “Era Cristã” (ou Anno Domini). O uso de expressões menos vinculadas à religião, como “Era Comum”, tem sido reivindicado por pesquisadores que lidam com diferentes culturas, como antropólogos, arqueólogos, historiadores etc. Mas a substituição da "Era Cristã" pela "Era Comum" não é restrita às ciências humanas e nem se trata de uma novidade.


O astrônomo Johanes Kepler já usava a expressão latina “anno aerae nostrae vulgaris” em 1615 e, desde então, variações de “Era Vulgar” (no sentido de comum) foram bem recorrentes como alternativa à “Era Cristã”, expressão mais ou menos contemporânea ao calendário gregoriano. A partir do século XVIII já existem registros da expressão "Era Comum" em inglês.


O receio dos cristãos com a "Era Comum" também não é novo e muito menos uma invenção brasileira. Já foi verificado pelo arqueólogo Robert R. Cargill em 2009, quando recomendou aos próprios cristãos o uso da expressão Common Era. Mas esse receio se amplificou com a atuação dos ideólogos da nova direita, que mais recentemente passaram a atribuir o uso de "Era Comum" a uma suposta tentativa do “politicamente correto” de remover Jesus de Nazaré do calendário. Em 2017, o escritor Joshua J. Mark contestou esses argumentos mostrando que o uso de expressões como “Era Comum” (EC) ou “antes da Era Comum” (aEC) tem precedentes na História e há muito tempo servem de alternativa a "depois de Cristo" (a.C.) e "antes de Cristo" (d.C.).


Mark menciona o fato de que a designação "Era Comum" facilitou a correspondência entre estudiosos não cristãos e a comunidade cristã. Judeus, islâmicos, hindus e budistas puderam usar o calendário gregoriano sem comprometer suas próprias crenças sobre a divindade de Jesus de Nazaré.


Além disso, a imprecisão dos cálculos de Exíguo tornam o ano de nascimento de Cristo tão arbitrário quanto qualquer outra data que pudesse ser escolhida para iniciar a "Era Comum". Mesmo assim, com toda sua inexatidão, o nascimento de Cristo continua sendo uma referência ainda que uma terminologia menos religiosa seja adotada em livros de História ou manuais didáticos.


O fato de sermos um país de maioria cristã não significa que devemos desconsiderar as minorias religiosas e não religiosas, que frequentam as mesmas escolas e compartilham o mesmo método de contar o tempo. A menos que queiramos nos valer de um estatuto de maioria para impor nossa fé e valores aos demais.


Evidentemente, se somos cristãos, temos todo o direito de demonstrar nossa fé, mas podemos fazê-lo de muitas maneiras bem mais significativas do que ficar insistindo numa sigla do calendário. Acreditar que o uso da expressão “Era Comum” seria uma forma de destruir o cristianismo mostra que essa fé não anda lá muito bem das pernas e tem se apoiado em pilares um tanto mal ajambrados.


Conclusão: LOROTA!


Considerando os discursos alarmistas e cheios de imprecisão nas informações divulgadas pelas redes sociais e considerando a nota oficial publicada pelo secretário de Educação, já teríamos elementos suficientes para considerar como uma clássica fake news a suposta extinção das expressões “antes de Cristo” e “depois de Cristo” dos materiais didáticos da Secretaria Estadual da Educação de São Paulo. As siglas "a.C." e "d.C." podem continuar sendo usadas, mesmo que a opção seja por priorizar as siglas "aEC" e "EC". O tema já até foi tratado na página Boatos.org. Mas a equipe do Projeto Detecta quis ir além, oferecendo para o público os resultados de uma singela pesquisa sobre os calendários e as expressões mais recorrentes nas datações criadas pela cultura ocidental.


Pesquisa e redação: Pablo Bráulio



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