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[Detecta]: Os apoiadores de Hitler foram comparados a gado?

Atualizado: 2 de nov. de 2020

No dia 24 de maio, um correspondente internacional da Globo News publicou uma thread no Twitter comparando a conjuntura política atual no Brasil com o período de ascensão do nazifascismo na Europa. O jornalista utilizou fontes históricas (jornais, cartazes e charges da época) para mostrar as semelhanças com alguns discursos presentes na atualidade.


Uma das charges acabou viralizando ao longo da semana (veja o print abaixo). Trata-se de uma caricatura de Adolf Hitler sendo saudado por uma multidão de bovinos. “Só o gado mais tonto vota em seu próprio açougueiro” seria o título da imagem, segundo o jornalista, que atribuiu a autoria da charge a Rudolf Hermann (1886-1965) e informou que ela teria sido publicada em 1932.

A charge chamou a atenção de muitos internautas pelo fato de os apoiadores de Hitler terem sido, nos anos 30, comparados a gado, mesma analogia que é feita hoje em dia com os apoiadores do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. Na charge, Hitler era representado como um "açougueiro", ludibriando suas vítimas com o dicurso enquanto elas seguem para o abatedouro.


A repercussão também chamou atenção de nosso agente especial, MarcBot, que imediatamente mobilizou a equipe do projeto Detecta para buscar as fontes originais da charge apresentada pelo jornalista.

Pesquisa

Tão logo, foi possível encontrar uma referência importante: o cartunista britânico Tony Husband editou, em 2016, um livro intitulado Hitler in Cartoons: Lampooning the Evil Madness of a Dictator, uma compilação de várias charges e caricaturas sobre o ditador que governou a Alemanha durante o regime nazista. Na coletânea feita por Husband consta a charge que viralizou esta semana entre perfis brasileiros nas redes sociais. Segundo o editor do livro, a imagem foi escolhida como capa da Roter Pfeffer, "revista cujo o objetivo era evitar a calamidade de Hitler ser eleito". Husband confirma a publicação da charge em 1932 e também atribui sua autoria a Rudolf Herrmann.

Com tais informações, foi mais fácil chegar aos arquivos do Museu Histórico Alemão. Em uma de suas divisões - a Biblioteca Digital Alemã - encontramos a referida capa, na edição número 7 da Roter Pfeffer, publicada em 15 de julho de 1932. O título original da charge é "Nur die allerdümmsten Kälber wählen ihre Metzger selber", cuja tradução seria algo bem próximo ao título atribuído pelo jornalista que tuitou a charge no último dia 24.


A charge foi publicada num contexto em que a Alemanha atravessava a pior fase da Grande Depressão, com 44% de sua força de trabalho desempregada, segundo dados apresentados por Eric Hobsbawm em sua obra Era dos extremos. Esse historiador conta como a crise econômica, associada a outros fatores, criou as condições para o fortalecimento da direita radical em vários países da Europa.


Na Alemanha, as medidas adotadas pela República de Weimar para contornar a situação econômica não foram bem sucedidas e aprofundaram ainda mais a crise. Os governantes perdiam toda sua credibilidade perante a população alemã.


A direita nacionalista, insatisfeita com a posição humilhante da Alemanha após o armistício de 11 de novembro de 1918, que pôs fim aos combates da Grande Guerra (1914-1918), criticava o establishment liberal democrático e ganhava o coração da população desesperada. "As condições ideais para o triunfo da ultradireita alucinada eram um Estado velho, com seus mecanismos dirigentes não mais funcionando; uma massa de cidadãos desencantados, desorientados e descontentes, não mais sabendo a quem ser leais; fortes movimentos socialistas ameaçando ou parecendo ameaçar com a revolução social, mas não de fato em posição de realizá-la; e uma inclinação do ressentimento nacionalista contra os tratados de paz de 1918-20. Essas eram as condições sob as quais as velhas elites governantes desamparadas sentiam-se tentadas a recorrer aos ultra-radicais, como fizeram os liberais italianos aos fascistas de Mussolini em 1920-2, e os alemães aos nacional-socialistas de Hitler em 1932-3", resume Eric Hobsbawm.


Nessa conjuntura, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, mais conhecido como Partido Nazista), liderado por Adolf Hitler desde 1921, soube muito bem se aproveitar da retórica e de diversos meios de divulgação política durante a crise econômica. Enquanto social-democratas e comunistas estavam divididos e digladiavam no esforço de formular uma solução eficaz, os nazistas aproveitavam o momento para culpar judeus e bolcheviques pela situação do país, algo que rapidamente ressoou em amplos setores do eleitorado alemão.


Se o partido de Hitler, em 1924, era reduzido a algo entre 2,5 e 3% do eleitorado (conseguindo pouco mais da metade do que o pequeno Partido Democrático alemão, pouco mais que um quinto dos comunistas e muito menos de um décimo dos social-democratas nas eleições de 1928), tornou-se o mais forte no verão de 1932, com mais de 37% dos votos totais.

Observador da vitória eleitoral nazista, o caricaturista da revista Roter Pfeffer expressou graficamente o que devia ser uma percepção geral entre as forças democráticas da época: os alemães entregando-se bovinamente ao seu algoz. Sob o novo regime, a Alemanha seria o único país ocidental a resolver o problema do desemprego entre 1933 e 1938, mas estaria submetida a um totalitarismo genocida e expansionista, que a lançaria a mais uma guerra de grandes proporções. Episódios como a tomada do poder por Hitler (30 de janeiro de 1933) e o incêndio do Reichstag (27 de fevereiro de 1933) tiveram duros desdobramentos para os judeus, ciganos, comunistas, homossexuais e outras minorias, mas também para os periódicos satíricos social-democratas e liberais de esquerda, bem como para todos os artistas que buscavam, pelo humor, evidenciar os desmandos políticos.


A revista Roter Pfeffer acabou sendo banida em fevereiro de 1933. Nascera em 1928 com o nome de Eulenspiegel, como uma publicação satírica que se colocava na defesa do proletariado. Mantinha vínculos com membros do Partido Comunista da Alemanha (KPD), que também seria banido pouco depois.


Nossa equipe encontrou poucas informações sobre o autor da charge, o ilustrador e caricaturista Rudolf Herrmann. Tudo leva a crer que ele nasceu em Viena em 1874, 1879 ou 1886 (segundo diferentes referências). Em buscas pela web, encontramos desenhos feitos por ele à venda em galerias e antiquários localizados na Alemanha e na Áustria. Localizamos também muitas ilustrações de Herrmann publicadas entre 1914 e 1916 na revista Die Muskete e digitalizadas pela Biblioteca Nacional da Áustria. É provável que o ilustrador tenha vivido até meados dos anos 60 do século XX.


Conclusão: CONFIRMADO!


Sim! A charge foi publicada em julho de 1932 pelo caricaturista Rudolf Herrmann no periódico satírico Roter Pfeffer. A crítica era direcionada aos apoiadores de Hitler, que naquele ano elegeram o partido nazista com 37% dos votos.


Com as devidas ponderações e cautelas, pois não podemos vincular passado e presente de forma tão mecânica, podemos observar como, nos discursos e nas sátiras, continuidades políticas se ressignificam e se mostram como sinais para que fiquemos cada vez mais alerta. Qualquer semelhança pode não ser mera coincidência.

Pesquisa e redação: Pablo Bráulio e Éverton Aragão.

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