Em 19 de maio, quando o Brasil registrou pela primeira vez mais de mil mortes por Covid-19 em 24 horas, o presidente da República, Jair Bolsonaro, soltou a já famigerada frase: “quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda toma tubaína”.
Não é de hoje que o presidente tem dado mostras de sua falta de empatia e consideração pelas vítimas da maior pandemia do último século, mas essa malfadada tentativa de piada não podia passar sem crítica e... notas de repúdio! Não ficou só nisso. A repercussão da fala do presidente continuou tendo muitos desdobramentos ao longo da semana.
Inicialmente tomada como mera piada ruim, a referência à tubaína suscitou alguns alertas de quem enxergou mais do que uma rima pobre nas intenções do presidente. Não demorou muito para uma narrativa instigante começar a correr as redes sociais. Foi aí que o nosso agente especial, MarcBot, entrou em ação.
Versões diferentes e mais sofisticadas foram aparecendo e tornando a investigação cada vez mais complexa. Nossa equipe agrupou as várias manifestações levando em conta alguns aspectos e conseguiu definir duas versões principais para a narrativa em análise. Vamos a elas!
Primeira versão
Muitas postagens pipocaram associando a palavra “tubaína” a um método de tortura aplicado desde a Idade Média. Segundo essa versão, a prática de introduzir grande volume de água diretamente na garganta de uma pessoa deitada, com suas mãos e pés presos, teria chegado ao Brasil na época da colonização e recebido aqui o apelido de “tubaína”. Essa versão foi propagada com uma ou outra variação, mas a postagem do print abaixo sintetiza bem a narrativa:
A referência usada na postagem existe. É uma matéria publicada pelo jornalista Thiago Cordeiro na revista Superinteressante sob o título de “Quais são as piores torturas com fogo e água?”. Contudo, a matéria simplesmente descreve a referida prática de tortura, entre outras, mas não apresenta o seu nome e muito menos seu apelido.
É verdade que essa técnica de tortura tem sido usada em muitos lugares e há muito tempo. Consiste em produzir na vítima sensação de afogamento para que ela confesse algo. Foi muito utilizada em algumas regiões da Europa no contexto da Reforma Protestante e da Contra Reforma Católica.
Algumas das raízes desse método de tortura pela água são identificadas na inquisição espanhola e na perseguição aos anabatistas no século XVI. O uso da água tem um papel fundamental no cristianismo. É pela água que o cristão se livra do pecado original e se inicia na religião pelo rito do batismo.
O anabatismo rejeitava o batismo infantil e quem se convertia ao movimento era (re) batizado na fase adulta. Daí o nome como ficaram conhecidos os seguidores desse movimento cristão, que foi duramente perseguido por católicos e protestantes. Vistos como hereges, muitos foram torturados ou executados pela água numa modalidade um tanto violenta de batismo.
Um dos registros mais antigos e consistentes dessa prática foi feito por um jurista flamengo chamado Joos de Damhouder (1507-1581), que publicou em 1554 o Praxis rerum criminalium, um grande manual de práticas jurídicas. O método aparece representado em uma xilogravura (imagem abaixo) que ilustra o 37º capítulo da obra, dedicado aos interrogatórios e à tortura.
É bem possível que o método tenha sido aplicado nas Américas durante o período colonial. Mas não há qualquer evidência de que ele tenha recebido, já naquela época, o apelido de “tubaína” no território sob domínio português que hoje corresponde ao Brasil. Nossa equipe consultou o historiador Aldair Carlos Rodrigues, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Segundo ele, "o tribunal da Inquisição português raramente empregava técnicas de tormento envolvendo água, prevalecia o uso de aparelhos feitos de cordas e madeira, como o polé e o potro". Estudioso do assunto, o historiador acrescentou: "o Brasil colonial nunca sediou um tribunal da Inquisição. Seus habitantes, quando acusados, eram presos pelos oficiais do tribunal que aqui residiam e levados para serem processados em Lisboa, onde então eram submetidos aos interrogatórios e sessões de tortura. Nunca encontrei registros do emprego da palavra 'tubaína' (ou suas variações) nesse contexto".
O mais provável é que a palavra “tubaína” tenha surgido no século XX para designar um tipo de refrigerante regional, que se tornou muito comum no interior de São Paulo. A palavra deriva de uma das primeiras marcas do produto: Etubaína, lançada nos anos 1930 pela fábrica de bebidas Orlando, localizada em Piracicaba.
Pouco depois, a fábrica Ferráspari, de Jundiaí, registrou a marca Tubaína, mas o termo acabou sendo usado para designar de modo genérico qualquer tipo de refrigerante popular, geralmente produzido por fábricas locais e comercializado por um preço bem mais acessível do que as marcas que dominam o mercado. Até hoje, algumas fábricas produzem tubaínas sob diferentes rótulos.
Um dia após a declaração de Jair Bolsonaro, a Associação de Fabricantes de Refrigerantes do Brasil (AFREBRAS) manifestou seu repúdio ao que chamou de “piada de mau gosto” feita pelo presidente. A entidade aproveitou para cobrar medidas do governo federal para o enfrentamento da crise econômica e da pandemia.
Conclusão para a primeira versão: LOROTA!
Considerando tudo o que levantamos até aqui, podemos afirmar que é falsa a narrativa que localiza no período colonial o surgimento do apelido “tubaína” para uma prática de tortura adotada pela Inquisição no princípio da era moderna. Contudo, essa narrativa ganhou outras versões e uma delas merece uma consideração à parte pelo nosso agente especial MarcBot.
Segunda versão
Entre as muitas versões da narrativa, algumas começaram a se tornar mais interessantes e verossímeis, como atribuir ao período da ditadura militar a origem do apelido “tubaína” para o método de tortura descrito acima. A postagem no print abaixo seguiu nessa vertente:
Essa versão se espalhou rápido e ganhou legitimidade ao ser endossada por vários perfis que fazem oposição ao presidente da República. Até alguns sites renomados veicularam a narrativa. “Sabe-se também que tubaína é uma gíria usada em quartéis para a técnica de tortura por afogamento em que se coloca um funil na garganta do torturado e despeja-se água sem parar”, afirmou um colaborador do DCM.
Mas a narrativa ganhou ainda mais força quando a socióloga Marília Moschkovich publicou um texto no Facebook para fundamentar o alerta que ela já havia feito no Twitter: “não façam piada”. Para ela, “tubaína” é o apelido “que torturadores brasileiros deram para essa forma de tortura da imagem”, afirmou se referindo à xilogravura extraída do Praxis rerum criminalium, já citado anteriormente.
A socióloga lembra que a rima com a cloroquina não foi a primeira menção de Bolsonaro à tubaína. Em 21 de dezembro de 2019, ao receber jornalistas no Palácio do Planalto, o presidente fez uma provocação ao falar de sua relação com a imprensa. Respondendo a um jornalista, Bolsonaro disse: “você mande seu colega para a ponta da praia; depois, vai tomar uma tubaína com ele”.
A referência à ponta da praia também é recorrente nas falas de Bolsonaro. Trata-se de uma alusão à base da Marinha no Rio de Janeiro que teria sido usada como local de tortura e execução de presos políticos durante a ditadura. De fato, os termos “tubaína” e “ponta da praia” na mesma frase estabelecem uma conexão bastante suspeita.
Moschkovich argumentou também que diversos pesquisadores “têm mencionado como os discursos de Bolsonaro são cifrados” e voltados para “o pequeno grupo-seita que o apoia incondicionalmente”, um grupo formado por militares e policiais. A socióloga não cita nenhum pesquisador, mas não precisamos de muitos instrumentos metodológicos para concluir que ela tem razão.
Bolsonaro nutre especial admiração por agentes da repressão que atuaram durante o regime militar. Chega a chamá-los de heróis. Sempre que pode elogia um famoso torturador que chefiou o DOI-Codi nos anos 70 e, recentemente, homenageou um militar acusado de vários crimes praticados durante a ditadura. Em seus discursos, Bolsonaro abusa de jargões militares e usa com naturalidade termos e expressões oriundas dos sinistros porões dos órgãos repressivos.
Embora as considerações de Moschkovich sejam sedutoras, elas são tidas como insuficientes. A principal objeção a seus argumentos reside na falta de fontes que confirmem a sugestão de que Bolsonaro alude à tortura quando fala da “tubaína”.
Para esse tipo de objeção, a socióloga retruca: “Nem sempre ‘fontes’ são pedaços de papel onde está tudo escrito, mastigado, sistematizado. Investigação/pesquisa é também um trabalho de ligar pontos, embasados em fatos históricos e análises já consolidadas”, conforme escreveu em sua postagem no Facebook.
Diante da repercussão do caso, vários pesquisadores especializados se manifestaram pelas redes sociais, insistindo na falta de evidências e alertando sobre a possibilidade de um hoax.
Renan Quinalha postou em sua conta do Twitter: “Por que apurei com ex-presos e pesquisadores sobre ditadura até agora, não há registro ou fonte de registro que possa ser torturado por afogamento, utilizando com frequência, para ‘tubaína’”. Quinalha é professor de Direito na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e atuou como advogado da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo.
Para o historiador Paulo César Gomes, que tomou parte nos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade e edita um site especializado no período ditatorial, a argumentação que associa a fala do presidente a uma prática de tortura não tem sustentação empírica, mesmo levando em consideração os testemunhos de vítimas e algozes. “Os apontamentos analíticos feitos estimulam a reflexão mas não há como a partir deles afirmar que se tem um fato. São necessárias ainda muitas checagens para que se chegue a tal conclusão”, comentou o historiador em resposta à postagem de Moschkovich no Facebook.
Gomes reconhece que a transição para a democracia após o regime militar foi problemática, o que prejudicou a construção de uma memória sobre o período (um dos argumentos de Moschkovich), mas ressalta a abundância de relatos de militantes de esquerda e de militares que atuaram na repressão. “Basta consultar os acervos do BNM, da CNV, do AN e mesmo do CPDOC, que fez um belíssimo trabalho de produção de fontes orais a partir de depoimentos de militares. Sem contar o trabalho do Marcelo Godoy, que lida com militares de baixa patente e outros executores de práticas repressivas para fazer um trabalho analítico aprofundado sobre a tortura”.
O historiador está se referindo ao projeto Brasil Nunca Mais (BNM), à Comissão Nacional da Verdade (CNV), ao Arquivo Nacional (AN) e ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV), cujos acervos são constituídos de vasto material sobre a ditadura.
Em seu comentário no Facebook, Gomes também menciona o jornalista Marcelo Godoy, autor de A casa da vovó. Uma biografia do DOI-Codi (1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar (Alameda Editorial, 2015). Fruto de uma pesquisa realizada entre 2004 e 2014, o livro reúne histórias, documentos e depoimentos inéditos dos policiais e militares que atuaram no Destacamento de Operações e Informações, cuja sede em São Paulo foi apelidada de Casa da Vovó.
É fato que os torturadores produziram um jargão próprio, repleto de gírias e expressões aparentemente singelas para se referir às suas práticas, aos seus instrumentos e aos espaços físicos onde executavam suas funções. É provável que houvesse nisso alguns regionalismos ou idiossincrasias de núcleos específicos da repressão. Certas expressões podem ter sido usadas pontualmente - por um grupo restrito e por pouco tempo - de tal modo que podem ter escapado à memória registrada, mesmo com todos esforços para que os terrores praticados por agentes do Estado brasileiro não fossem esquecidos. Contudo, a relação da “tubaína” do presidente com a tortura ainda não passa de um palpite.
Até agora, apenas o site de notícias Leia Já trouxe um depoimento que corrobora essa versão. Segundo o site, o ex-deputado Adriano Diogo teria afirmado o seguinte: “Esse jargão de chamar o afogamento de tubaína era comum entre os militares. Ouvimos isso várias vezes. O torturador falava: ‘quer tomar uma tubaína filho da p...’ e introduzia o funil na boca (dos torturados) por onde colocava água e até líquidos mais complicados, como o óleo de rícino”. Adriano Diogo foi torturado durante o regime militar e presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo.
Conclusão para a segunda versão: CARECE DE FONTES!
Nas linhas acima, levantamos muitas informações que nos fornecem bons indícios para cogitar a hipótese de que Jair Bolsonaro poderia estar fazendo alusão a uma prática de tortura, quando declarou que a "esquerda toma tubaína" ao invés de cloroquina. Contudo, a documentação não é suficiente para garantir que essa foi a intenção do presidente.
De fato, a tortura com água era um dos vários métodos adotados pelos agentes da repressão durante a ditadura civil-militar no Brasil. A descrição dessa prática está presente em muitos relatos de vítimas do regime. Consta também entre as modalidades levantadas pelo projeto Brasil Nunca Mais.
Conhecida como waterboarding, essa técnica causa debate até hoje nos Estados Unidos por ser adotada pela CIA e pelas forças armadas estadunidenses em sua "guerra ao terror". Não é de se duvidar que esse tipo de tortura possa ser adotado também no Brasil por grupos estatais ou paraestatais em suas ações de repressão.
Quanto ao termo "tubaína", ainda ficamos à espera de mais elementos que possam fortalecer a tese de que o termo é ou foi utilizado, em certos círculos militares e policiais, para se referir à tortura com água. Nosso agente MarcBot continua investigando.
Pesquisa e redação: Pablo Bráulio
Do Máquina dos Tempos: Na elaboração deste texto, há referências a manifestações e publicações feitas por várias pessoas e organizações. Se alguém se sentir incomodado com a menção ou entender que a citação foi retirada de contexto, basta entrar em contato com o site Máquina dos Tempos. Estamos abertos a retratações e alterações no texto. O objetivo do site é esclarecer o público e divulgar o conhecimento histórico e não há a menor intenção de desqualificar ou prejudicar o trabalho de nenhum pesquisador.
Comments