Este pequeno texto é uma defesa da ciência histórica e de seus profissionais – os historiadores.
“Se aparência e essência fossem coincidentes, a ciência não seria necessária” (Karl Marx)
A internet, sem dúvida, revolucionou a maneira de lidarmos com o conhecimento. Por meio dela, temos acesso a uma infinidade de informações, em diversos formatos, sobre os mais variados assuntos. Por outro lado, a internet também tem contribuído para a ampliação de debates e discussões. Nas redes sociais, principalmente, as pessoas têm a facilidade, e até mesmo a liberdade, para opinar sobre os mais variados temas, a qualquer hora e de qualquer lugar.
No entanto, o que se nota é que, nesse cenário aparentemente democrático oferecido pelas redes sociais, opinar, mais do que um direito, tem se tornado, muitas vezes, uma obrigação. Na internet, temos que ter uma opinião sobre tudo. A todo momento, há uma exigência de sempre estarmos nos posicionando em relação a algo. Mesmo que esse “algo” tenha acontecido há cinco minutos. Todavia, a verdade é que somos incapazes de opinar sobre tudo, pois, é impossível ter conhecimento de tudo.
Contudo, muitas pessoas parecem ignorar isso, assim como não estão dispostas a abdicar de sua liberdade de expressão. O resultado disso é que, cada vez mais, as redes sociais, estas que têm sido a grande arena pública da contemporaneidade, têm sido o palco de um verdadeiro show de bizarrices, em que comentários ilógicos e infundados ganham a cena.
O que se nota é que, a ânsia de opinar sobre determinado assunto tem levado as pessoas a falarem qualquer coisa sobre ele. Algumas vezes, leem um pequeno artigo, assistem um vídeo, ouvem um podcast... Pronto! Já estão completamente capacitadas para se posicionar em relação a um tema. Em algumas ocasiões, não é incomum a figura de internautas que acham que sabem mais do que os especialistas da área.
Pior do que opiniões vagas e infundadas, somente aquelas que são embasadas em mentiras absurdas. Essas, cada vez mais frequentes, não têm o menor compromisso com a ética e com a verdade – vejam o fenômeno das notícias falsas, fake news, que está na ordem do dia. Não raro, essas pretensas “opiniões” estão atreladas a visões conservadoras, fundamentalistas e intolerantes. Além disso, também partem da concepção de que opinião é algo puramente “individual” e que cada pessoa tem a sua – assim, justifica-se a negação dos fatos e do conhecimento científico.
Nesses tempos de pós-verdades, em que as crenças, os valores e as convicções “pessoais” valem mais do que a lógica e a evidência dos fatos, a ciência tem vivido grande desprestígio. Na verdade, ela tem sofrido um verdadeiro ataque. Atualmente, temos visto a completa negação de conquistas científicas até então consolidadas. Temos acompanhado o destaque que movimentos como o terraplanismo, antivacina etc., bem como “teorias da conspiração”, têm tido na opinião pública. Acompanhamos, também, os crescentes cortes na área da pesquisa científica, que têm afetado grandemente as universidades públicas brasileiras e o conhecimento que é produzido em nosso país.
Nesse cenário de grande ataque às ciências, a história tem sofrido bastante. Não apenas porque é uma ciência – sim, pasmem, a história é uma ciência! –, mas também porque se trata de uma ciência humana, que, segundo a lógica capitalista neoliberal (utilitarista, pragmática, mercadológica), não serve para nada. Afinal, para que estudar acontecimentos que já se passaram? O que eles têm a ver conosco? O que eles têm a ver com a economia, com o mercado? – “Estudar história não dá dinheiro!”, muitos dizem.
Verdade. A profissão de historiador, sobretudo aqui no Brasil, não torna ninguém rico (risos). Além disso, ela não tem trazido tanta respeitabilidade assim. Muito pelo contrário. A história, juntamente com as demais ciências humanas, é muitas vezes tratada como um “anticristo” (risos). Entretanto, apesar dessas adversidades, a alegação que diz que a história é opinião não é verdade. A História não é opinião. A História é uma ciência.
Ela se constituiu enquanto disciplina acadêmica na Europa oitocentista – momento caracterizado pela valorização do pensamento científico, inclusive. Por ser uma ciência, a história possui aportes teóricos e metodológicos que são empregados pelos historiadores – seus profissionais. E para que os historiadores se utilizam deles? Para estudar as sociedades humanas ao longo do tempo. Para entender acontecimentos e processos que influenciaram e influenciam as vivências humanas.
Para fazer esse estudo, nós, historiadores, utilizamos as fontes – que são vestígios produzidos pelas sociedades. Esses vestígios não traduzem “a verdade” que se passou. A verdade é que eles foram produzidos (intencionalmente ou não) por sujeitos concretos, com valores, convicções e interesses assim como nós. Dessa forma, cabe a nós, historiadores, identificar isso por meio da análise crítica das fontes.
Obviamente, nós, historiadores, temos opiniões. Somos, assim como as demais pessoas, sujeitos históricos, sociais e políticos. Nesse sentido, não pensamos todos da mesma forma. No entanto, enquanto cientistas, temos o compromisso com a ética e com a evidência dos fatos – portanto, com a verdade. As hipóteses e conclusões a que chegamos não são inventadas por nós. Elas devem estar pautadas na investigação que fazemos das fontes. As questões que fazemos a estas são inúmeras, e podem variar ao longo do tempo, conforme as demandas sociais. No entanto, as respostas que elas nos fornecem são delimitadas pelo seu tempo.
A história, assim como as demais ciências, é particular. Possui uma maneira distinta de realizar a investigação de seu objeto de estudo. Os historiadores, por exemplo, não podem coletar amostras de eventos e processos, que se deram em dado tempo e espaço, armazená-los, e depois manipulá-los em um laboratório. O tempo, categoria fundamental para que os historiadores entendam os fatos, não pode ser apreendido, controlado ou manipulado por nós. Todavia, essa impossibilidade não invalida a cientificidade da história.
Para muitos, seja por ignorância, seja por oportunismo, a história não é uma ciência. Para algumas pessoas, o conhecimento histórico é simplesmente questão de perspectiva. Assim, na “melhor” das hipóteses, essas pessoas acreditam ter opiniões divergentes do “ponto de vista” dos historiadores. Assim, não é difícil nos depararmos com pessoas de “opinião” de que não houve golpe empresarial-militar em 1964, nem mesmo ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), por exemplo. Outras partilham daquele “ponto de vista” que alega que a escravidão nem foi tão ruim assim...
Para essas pessoas, “opiniões” como essas são totalmente legítimas. Afinal, vivemos em um país democrático. Todos podem ter opiniões e expressá-las, não é mesmo? O que importa se os historiadores, por meio de pesquisa científica, chegaram a outras conclusões...
Em oposição ao “delírio” dos historiadores, muitas dessas pessoas se comprometem com a defesa de uma “história verdadeira” – sem partidos. Uma “história alternativa” à “doutrinação” empreendida pelos historiadores. No entanto, apesar de se colocarem à serviço de uma “história sem partidos”, o que muitos desses oportunistas querem, na verdade, é uma narrativa histórica que apenas conforme os seus preconceitos. Querem porque querem que a história se adeque, a todo custo, a suas concepções – mesmo que isso implique a negação da verdade.
Infelizmente, esta não é a primeira vez na história que o conhecimento produzido e divulgado pelos historiadores é invalidado. O que chama a atenção é que hoje, mais do que nunca, a história é bastante consumida pelos brasileiros. Sobretudo por meio das mídias sociais – com destaque para a internet. Nesta, a cada dia surge um novo site, blog, canal de história etc. Alguns são organizados por historiadores, outros não. O fato de muitos não serem encabeçados por historiadores não anula o debate histórico promovido por eles. O conhecimento histórico não é propriedade dos historiadores, nem muito menos deve ser confinado na academia. No entanto, a questão é, por que os historiadores e suas produções têm sido desconsiderados quando o assunto é história?
Essa questão precisa ser continuamente pensada pelos historiadores. Para algum de vocês, o questionamento que conduziu esse texto pode parecer bobagem. Para os historiadores, a história, sem dúvida, é uma ciência (apesar de também existirem aqueles profissionais que discordem disso). No entanto, em tempos de pós-verdades, negacionismos e anticientificismo, nós, cientistas, muitas vezes temos que explicar o óbvio. Nesses momentos, é preciso que nós, historiadores, mais do que nunca, afirmemos a validade científica da história.
Referências
BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
MENESES, Sônia. Uma história ensinada para Homer Simpson: negacionismos e os usos abusivos do passado em tempos de pós-verdade. Disponível em < https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/522 >. Acesso em 23/04/2020.
BORGES, Vavy Pacheco. O que é história. São Paulo: Brasilense, 1993.
História: o ofício do historiador (Entrevista dada pela historiadora Maria Helena Capelato). Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=deVwuwS5Gqg >. Acesso em 23/04/2020.
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