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Marx, marxismo(s) e história

Atualizado: 23 de jun. de 2020

Quer você goste ou não de Karl Marx (1818-1883), você não pode negar a contribuição de sua obra para a ciência – sobretudo para a grande área das ciências humanas. Apesar de não ter sido historiador, e de não ter escrito nenhuma obra de história, a preocupação histórica e historiográfica atravessa toda a volumosa produção de Marx. Não à toa, ela legou a nós, historiadores, um novo paradigma historiográfico: o materialismo histórico.

Estátua com o busto de Marx na cidade de Chemnitz, Alemanha.

O materialismo histórico é um aporte teórico-metodológico elaborado a partir das análises que Marx desenvolveu sobre a dinâmica da sociedade capitalista – o seu grande objeto de estudo. Uma série de conceitos e noções são fundantes desse paradigma: dialética, materialismo, historicidade, práxis, luta de classes, modo de produção etc. A maioria deles, é verdade, não foi criada por Marx, mas, a partir de suas análises, eles ganharam outras aplicações e significados.


Um exemplo disso é a noção de dialética, que Marx tomou de Hegel. Marx, a partir de Hegel, compreendia que a história estava em constante movimento – em um movimento dialético, proporcionado pelo choque dos contrários. No entanto, se para Hegel esse movimento partia do “Espírito” (Razão), para Marx o que o impulsionava era mundo material – da existência concreta.


Sobre a obra de Marx (também chamada de marxiana), não é exagero dizer que ela revolucionou a historiografia. Quando ele escreveu a sua obra, no século XIX, o positivismo era dominante nas produções historiográficas. Naquele momento, em oposição à história política, militar e diplomática escrita exaustivamente pelos positivistas, Marx, a partir do seu conceito de “modo de produção”, chamou a atenção dos historiadores para as condições socioeconômicas. Ao contrário dos positivistas, que destacavam a história dos grandes homens, Marx enfatizou a história dos grupos sociais, destacando a perspectiva dos explorados – a classe trabalhadora. Ao invés do estudo de fatos e eventos, Marx optou pelo estudo das estruturas. E às noções de causa/efeito, ele contrapôs a de dialética. Em decorrência disso, Marx não via a sociedade como um todo harmônico, tal como os positivistas, mas sim atravessada de conflitos.


Na ciência, a obra de Marx deu origem a tradição teórica marxista (ou, simplesmente, marxismo). Segundo Eric Hobsbawm, renomado historiador marxista do século XX, o marxismo exerceu grande influência na historiografia. Entretanto, Hobsbawm destaca que, infelizmente, grande parte dessa influência foi fornecida pelo “marxismo vulgar”. É assim que ele chama as interpretações marxistas de caráter determinista, economicista e etapista – que foram disseminadas a partir do stalinismo.


O marxismo vulgar se baseia em interpretações simplistas e equivocadas da obra de Marx. Conforme Hobsbawm alegou, ele exerceu e, infelizmente, continua exercendo influência no cenário acadêmico. No entanto, ele não deve ser tratado como “o marxismo”. Nem toda interpretação marxista é vulgar. Nesse sentido, o marxismo não se trata de uma tradição teórica homogênea. Muito pelo contrário: o marxismo reúne intelectuais que, muito embora tomem a obra de Marx como base, eles possuem, contudo, diferentes perspectivas e desenvolvem as mais diferentes análises para os fenômenos sociais. A diversidade no interior do marxismo é tamanha que muitas interpretações marxistas chegam até mesmo a ser conflitantes. Assim, temos que não há o marxismo, no singular, mas os marxismos, pois o conjunto das produções marxistas é plural – conforme nos destaca José Paulo Neto.


Um exemplo famoso que ilustra a diversidade no interior da tradição marxista é o livro A miséria da teoria (1978), do historiador marxista inglês E. P. Thompson. O livro é uma crítica dirigida ao pensamento do também marxista Louis Althusser.

Capa do livro "A Miséria da Teoria".

Entre os historiadores, a obra marxiana é recepcionada de distintas formas. Assim como os teóricos marxistas, de modo geral, os historiadores marxistas, de modo particular, também são diversos e elaboram, a partir de Marx, diferentes análises sobres os processos e eventos históricos.


O campo da história, semelhante ao que ocorre em outros campos, também é caracterizado pela presença de posições extremistas em relação à Marx: há historiadores que tratam a sua obra como um dogma que deve ser seguido cegamente, independentemente das evidências empíricas, e, de modo oposto, há aqueles que jogam a obra marxiana na lata do lixo, como se ela não tivesse nada a nos dizer. Ambos os posicionamentos são equivocados. Dogmatismo e intolerância não combinam com ciência.


De um lado, se negar a conhecer a obra de Marx é ignorar um autor fundamental para a compreensão da sociedade capitalista. Além disso, no campo da história, preconceitos em torno da obra marxiana podem impedir que se conheça as produções historiográficas marxistas, muitas das quais são extremamente importantes não apenas para a história da historiografia, mas para o próprio estudo da história (vide obras de autores como Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Jr., Ciro Flamarion, E. P. Thompson, E. Hobsbawm, Christopher Hill, Perry Anderson etc.).

Caio Prado Jr.

De outro lado, aceitar a obra de Marx de maneira cega é também limitar o nosso horizonte de conhecimento. Se é verdade que a obra de Marx é fundamental para compreendermos a sociedade moderna, isso não significa dizer que, sozinha, ela é suficiente. A obra de Marx traz muitos recursos que permanecem sendo válidos para o estudo da sociedade capitalista, mas também apresenta outros que já foram superados. Além disso – nós historiadores bem sabemos –, Marx, como todo e qualquer sujeito, foi um homem de seu tempo. A sua obra é marcada pelos limites e pelas possibilidades do século XIX. Há temas e questões que Marx nunca poderia ter escrito em função da época em que ele viveu. Cabe a nós, cientistas, com rigor teórico-metodológico, descobrir e atestar em que casos e até que ponto o pensamento de Marx nos serve.


O importante a ser destacado é isso: a obra de Marx é fundamental para entendermos a sociedade moderna, o marxismo é plural, e ambos exerceram e continuam exercendo grande influência no campo da história. Daí a necessidade de conhecermos esse autor. Conhecê-lo, é sempre bom lembrar, não implica a aceitação de seu pensamento de forma automática.


Também é importante compreendermos que se a obra de Marx é histórica, a sua leitura, apropriação e ressignificação também o é. Em outras palavras, há todo um contexto político, econômico, cultural e intelectual que nos leva a ler e escolher determinados elementos – e não outros – da obras marxiana e marxista. Isso nos ajuda a entender que, hoje, as datas de nascimento e morte de Marx não desencadeiam comemorações porque ele é uma espécie de divindade, mas porque o seu pensamento, fruto de uma época, segue sendo importante para entendermos muitas questões postas pelo nosso tempo.


Referências


BARROS, José D’Assunção Barros. “O materialismo histórico”. In. Teoria da História. Vol. III. Os paradigmas Revolucionários. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p. 15-154.


CARVALHO, Anna Isabel de, LESSA, Simone Narciso. O marxismo e a história: considerações acerca da concepção materialista da história. In. Anais da II Congresso Internacional de história da UFG/Jataí. Disponível em < https://www.congressohistoriajatai.org/anais2011/link%2025.pdf >. Acesso em 16/06/2020.


EAGLETON, Terry. “História”. In. Marx e a liberdade. Lisboa: Edições Dinossauro, 2002. p. 45-60.


HOBSBAWM. Eric. “O que os historiadores devem a Karl Marx?”. In. Sobre história. São Paulo: Companhia das letras, 2013. p. 200-220.


NETTO, José Paulo. O que é marxismo. São Paulo: Brasiliense, 2006.

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