top of page
Foto do escritorPablo Bráulio

Golpe & revolução & contrarrevolução & contragolpe

Atualizado: 17 de mai. de 2020

"Retornei ao passado para contribuir, modestamente, com aqueles que, diuturnamente, trabalham para impedir que uma nova história seja reescrita pelos derrotados e que uma nova tentativa revolucionária tenha êxito".

Assim afirmou Carlos Alberto Brilhante Ustra no texto introdutório de A verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça, livro de cabeceira do atual presidente da República. Ao justificar a publicação de sua obra, em 2006, o famoso torturador reitera a clássica narrativa triunfante dos militares sobre o golpe de 64, ao qual se refere como “contrarrevolução”. Enquanto Ustra esteve à frente do DOI-Codi (1970-1974), ocorreram quarenta mortes em quarenta meses e uma denúncia de tortura a cada sessenta horas, segundo a Arquidiocese de São Paulo.

https://medium.com/labjorfaap/quem-foi-coronel-brilhante-ustra-502824bc8d68
Carlos Alberto B. Ustra (Foto: Sérgio Lima/Folhapress)

Na época em que publicou seu livro (cerca de trinta anos após ter prestado seus serviços à repressão), Ustra ainda pintava os "perigosos comunistas" que ele ajudou a derrotar nos anos 70 como uma ameaça. Ao atualizar sua guerra-fria pessoal, trazendo o passado para o presente, Ustra colocava suas memórias a serviço de um projeto de poder.


Ustra morreu em 2015, antes de ver esse projeto de poder se consumar e provavelmente sem nem imaginar que seu livro se tornaria um best-seller dez anos após sua publicação. O boom de vendas coincidiu com a onda conservadora no Brasil e com o ressurgimento do discurso anticomunista no debate público. Além disso, o livro convergiu com os anseios de militantes engajados no combate ao “marxismo cultural” (?!).


No âmbito acadêmico, foram quase inexistentes as referências à obra de Ustra, mas seu impacto no debate público precisa ser levado em consideração, pois Ustra tem sido reiteradamente citado por alguns grupos e indivíduos que se engajam em ações desonestas para revisar ou negar elementos do passado ditatorial do país. Essas ações e seus agentes serão objeto desta postagem, que é o quarto artigo da série sobre ensino de história da ditadura no Brasil.


Quem são? Onde vivem? Do que se alimentam? Neste artigo, procuramos identificar quem tem atuado para interferir na memória social sobre o período de 1964 a 1985. E quais são os seus principais métodos e motivações, como e por que operam para resgatar as narrativas militares, difamar as vítimas do regime, desmerecer a pesquisa historiográfica e combater todos os avanços no sentido de reconhecer a violência praticada pelo Estado brasileiro durante o governo dos militares.


Do que se alimentam?


ACEPIPE: “HISTÓRIA OCULTA”


Todo mundo sabe como funciona uma fofoca. Ao tomar conhecimento de um rumor (uma informação que não é pública, que deve ser mantida sob certa discrição), você sente um certo prazer. Esse prazer talvez venha da sensação de que uma “verdade” oculta lhe foi revelada com certa exclusividade.


Ainda que a “rádio-peão” já tenha feito o trabalho de espalhar essa notícia-meio-secreta entre praticamente todas as pessoas do seu círculo social, o simples fato de você não estar excluído desse circuito subterrâneo de informação já te deixa feliz, pois estabelece uma relação de cumplicidade, dá a sensação de pertencimento. E manter esse circuito funcionando – repassando a fofoca para outras pessoas – também é recompensador por você poder transmitir aquela revelação, incluindo outros amigos nesse circuito. Graças a você, esses amigos tomam conhecimento de uma informação que, para uma suposta maioria, ainda permanece oculta. Uma boa fofoca reforça laços de amizade e lhe permite angariar novos amigos ao incluir outras pessoas nesse circuito.


Mas o que isso tem a ver com a História? Ora! Certamente você já foi seduzido por enunciados como “isso você não aprende na escola” ou “os livros de História não mostram a verdade sobre tal assunto”. Existe sempre uma história oculta por trás de tudo. Claro! As narrativas históricas não dão conta de toda a complexidade da vida. E a ideia de uma “história oculta” é muito sedutora!


Quem não fica atiçado ao supor que haja algo escondido por trás de um determinado fato histórico? Essa é uma intuição fundamental para a produção do conhecimento. A vontade de aprender depende dessa dúvida inicial. Mas, do mesmo modo que essa intuição abre horizontes de conhecimento, ela também pode ser um instrumento de submissão a teorias conspiratórias.


A “história oculta” encanta o público. Seduz a audiência. Ser portador de um rumor – uma “verdade” ainda não revelada – é também uma estratégia para fazer novos amigos... e também: novos inimigos! Afinal, aquele que escondeu a grande “verdade” esse tempo todo passa a ser o grande vilão – uma ameaça a ser combatida! Ultimamente, a pecha de vilão tem recaído sobre professores e professoras de História, aos quais também são atribuídos outros xingamentos: "esquerdistas", "comunistas", "doutrinadores" e adeptos de um tal "marxismo cultural".

PRATO PRINCIPAL: “MARXISMO CULTURAL”


Voltemos ao livro do Ustra: o subtítulo (“a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça”) é repleto de simbologia. Primeiro, coloca “Brasil” e “esquerda” como elementos antagônicos, já definindo um inimigo: se nos identificamos com o Brasil, logo, nosso inimigo é "a esquerda".


E quando se trata do passado histórico, nessa “esquerda” estão incluídos historiadores (as) e professores (as) da área, que não querem que você conheça a História. São eles (as) que sufocam a “verdade”. Essa retórica está presente em vários materiais produzidos pelos negacionistas e revisionistas mal intencionados, que conclamam seus seguidores a uma rebelião contra professores e professoras de História, uma raça infectada pelo “marxismo cultural”.


Uma ideia muito difundida dentro desses círculos é mais ou menos a seguinte: os comunistas não conseguiram tomar os meios de produção e sua revolução falhou; contudo, os comunistas não desistiram do seu projeto e, com o fracasso no campo econômico, passaram a atuar no campo cultural, onde estariam tendo muito sucesso.


Nessa concepção, tudo estaria contaminado por um tal de “marxismo cultural”, supostamente difundido por Antonio Gramsci e pela Escola de Frankfurt. A música, a televisão, o cinema, o teatro, a imprensa, a política, a educação, as ciências humanas e até as ciências da natureza... praticamente toda produção cultural e intelectual da humanidade desde o século XX seria fruto de uma grande conspiração de esquerda para destruir a propriedade, a religião, a família, as tradições, o capitalismo e tudo o que já foi lindo e maravilhoso nesse mundo.


É difícil um intelectual sério dar atenção a essas ideias, mas dada a penetração delas no debate público, alguns acadêmicos têm dedicado parte de seu precioso tempo para buscar entender como uma ideia dessa passa a fazer sentido para tantas pessoas. Assim, um historiador chamado Rodrigo Perez Oliveira publicou recentemente um breve e interessante ensaio no qual abordou o papel do escritor e youtuber Olavo de Carvalho (olha ele aí de novo!) na disseminação dessas ideias sobre o dito “marxismo cultural”.


A intenção de Oliveira é mostrar que o discurso “olavista” tem alguma coerência interna e radicaliza um determinado regime epistemológico para negar o procedimento científico. Ora, se a ciência está toda contaminada pelo tal “marxismo cultural”, devemos rejeitar seus métodos. Mas como chegar ao conhecimento das coisas sem a ciência?


Segundo esse raciocínio, devemos chegar ao conhecimento pela nossa própria vivência. Assim, os testemunhos pessoais são mais importantes, abrindo-se caminho para o reinado da opinião. Em linhas gerais, a força epstemológica que o testemunho ganha a partir das experiências repressivas do século XX (discutimos isso no artigo anterior) é radicalizada por Carvalho ao ponto de negar a própria ciência e abrir caminho para a mera opinião ou para as crenças pessoais como forma de "conhecimento".


Em 2018, durante uma entrevista ao Jornal Nacional, o então candidato à presidência Jair Bolsonaro – todo trabalhado no olavismo – mandou deixar os historiadores pra lá ao se referir ao golpe de 64. Em contraposição às pesquisas historiográficas, os adeptos do negacionismo histórico recorrem à vivência pessoal: “mas meu avô nunca sofreu tortura”, logo, não houve repressão.


SOBREMESA: “MAS MEU AVÔ DISSE...”


O recurso às vivências pessoais e ao testemunho de um familiar, amigo, primo ou vizinho é bem recorrente entre muitas pessoas que desejam negar dados e análises apresentados com base em estudos mais sofisticados. Não é à toa que, recentemente, o falso relato do primo de um porteiro foi insistentemente utilizado para contestar os dados oficiais sobre o aumento de casos de pessoas infectadas com o coronavírus no Brasil.


Se no campo da saúde pública é assim que a banda toca, imaginem nas ciências humanas, muito mais suscetíveis ao reinado da opinião. Se no tempo presente é assim, imaginem quando o assunto é algo que já passou, que já foi em partes esquecido.


E quando se trata da memória e da história da ditadura civil-militar, é muito comum que docentes da área se deparem com argumentos deste tipo: "meu avô falou que só bandidos foram presos durante o governo dos militares"; "meu pai disse que naquela época não havia criminalidade e corrupção"; "meu tio falou que o ensino era de qualidade e os professores tinham autoridade".


É essa lógica que organiza o discurso presente no vídeo divulgado pelo Palácio do Planalto em 31 de março de 2019. Em discursos como esses, impera um saudosismo meio ingênuo e conivente; e a ditadura é pintada como um tempo mítico: época de segurança, honestidade pública e prosperidade.


UM PRATÃO CHEIO PARA O NEGACIONISMO HISTÓRICO


Resumindo: a sedução da "história oculta", as teorias da conspiração, a vivência pessoal sobreposta à pesquisa científica, o saudosismo conivente, o ressentimento com as narrativas hegemônicas, a idealização de épocas anteriores e os medos disseminados na sociedade formam um prato cheio para o negacionismo histórico e para os usos do passado por um determinado projeto de poder.


É disso que tem se alimentado uma “nova direita” para defender o autoritarismo conservador como saída legítima para uma suposta crise política e moral da sociedade. Mas, quando falamos de uma “nova direita”, a quem estamos nos referindo?


Quem são? Onde vivem? O que pretendem?


O esforço de negar certos aspectos do passado ditatorial não é apenas dos militares. Há muito mais gente engajada nisso. Não se trata de um grupo único nem homogêneo. Poderíamos dizer que essas pessoas fazem parte de uma complexa "comunidade de memória em rede".


São vários grupos ou indivíduos que atuam de forma mais ou menos espontânea; utilizam-se principalmente de produtos digitais (memes, vídeos, publicações curtas) para difundir suas ideias em redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram etc.), blogs, canais do Youtube e grupos de whatsapp; identificam-se com valores conservadores e produzem inimigos comuns (a "esquerda", o "comunismo" etc.).

Como já foi mencionado nesta série de artigos, o negacionismo e os revisionismos desonestos sobre a ditadura civil-militar proliferaram em meio à onda conservadora e ao processo de reinvenção das direitas no Brasil. Além disso, tais grupos e indivíduos associam-se a iniciativas como o movimento Escola Sem Partido para dizer que as aulas de História sobre a ditadura são partidarizadas e servem à doutrinação de esquerda. Assim, os agentes do negacionismo pretendem reescrever e ensinar a História a partir do seu próprio ponto de vista.


Esses grupos e indivíduos tendem a se identificar – com maior ou menor intensidade – com alguma (geralmente várias ao mesmo tempo) destas bandeiras: militarismo, monarquismo, liberalismo, libertarianismo, nacionalismo, patriotismo, conservadorismo etc.; é recorrente também a defesa da família (como instituição cristalizada numa configuração tradicional e entendida como imutável), da religião (mas somente o monoteísmo de vertente judaico-cristã), das tradições, dos bons costumes e da civilização ocidental (com significados imprecisos para tudo isso); são comuns as referências positivas aos Estados Unidos, a Israel e a um passado idealizado do Brasil (especialmente ao período imperial e aos governos militares dos anos 60 e 70) e da Europa (geralmente a Idade Média).


Enfim, são referências diversas, umas mais convergentes outras mais difusas, mas sempre instrumentalizadas na produção do “outro” como um inimigo. Portanto, o anticomunismo é geralmente um ponto de encontro.


É difícil fazer um mapeamento de todos os grupos e indivíduos atuando nesse tipo de revisionismo histórico. Os materiais produzidos aparecem dispersos em vários canais de youtube ou centenas de perfis nas redes sociais.


Podemos dizer que as páginas mais engajadas nesse revisionismo são aquelas vinculadas a militares ou simpáticas às Forças Armadas. Um site chamado “A verdade sufocada” dedica-se à divulgação do livro do coronel Ustra, além de produzir material sobre o que chama de “contrarrevolução” de 64, tal como o blog de Licio Maciel, tenente-coronel da reserva denunciado em 2012 por crimes praticados no Araguaia. Outro exemplo é o Grupo Inconfidência, associação civil de caráter nacionalista e militarista que, entre suas finalidades, inclui a defesa do “perene fortalecimento da Consciência Cívica Nacional”.


No Youtube, alguns vídeos estão entre os preferidos de diversos canais identificados com a direita. Um documentário de 2015 chamado O contragolpe de 1964 – a verdade sufocada é repercutido por mais de uma dezena de perfis, como “Direita Volver” e “Canal Politizador”. Um vídeo mais curto, sob o título de Regime Democrático Militar, também tem pelo menos meia dúzia de uploads no Youtube, vinculados a canais como “O pesadelo dos políticos” e “A verdade sobre o Regime Militar no Brasil”. Entre os não militares, destacamos o ator Silvio Matos, cujos vídeos sobre ditadura e anticomunismo têm grande repercussão na web. Por fim, o canal “Vamos falar de História?” oferece pequenos cursos sob um viés conservador, militarista e monarquista (até o fechamento desse artigo não foi possível verificar se o youtuber responsável pelo canal tem formação que o habilite a lecionar História).


Talvez a iniciativa mais organizada e estruturada – com o objetivo de reescrever a História em contraposição àquilo que eles consideram de esquerda – tenha surgido em Porto Alegre no ano de 2016, quando foi criado o think tank Brasil Paralelo, uma produtora de audiovisual que tem se especializado em cursos e documentários sobre política e história do Brasil.


O historiador Fernando Nicolazzi tem acompanhado e feito boas análises sobre a produção dessa think tank. Em 2019, a produtora lançou um documentário denominado 1964: o Brasil entre armas e livros, causando repercussão na mídia (ver matéria do UOL e da Revista Piauí) por tentar amenizar o regime ditatorial e insistir no pretexto da “ameaça comunista”.


O que alegam?


Para concluir este quarto artigo da série sobre o ensino de história da ditadura, serão abordados os principais argumentos produzidos no âmbito dessa “comunidade de memória” que tem atuado no sentido de negar alguns aspectos centrais do regime vigente entre 1964 e 1985.


Nos discursos negacionistas, três pontos são recorrentes: 1) o que ocorreu em 1964 NÃO foi golpe e sim um contragolpe; 2) o governo dos militares NÃO era uma ditadura, pois tinha legitimidade e havia democracia; 3) durante os governos militares, NÃO havia crise econômica, política e moral.


NEGAÇÃO 1: (NÃO) FOI GOLPE


Ao assumir a condução do Estado brasileiro, em abril de 1964, os militares denominaram seu movimento de “revolução”. O termo faz parte da simbologia da instauração do regime. Cassado o mandato de João Goulart, o governo passou para as mãos de Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, mas quem exerceu o poder na prática foi o Comando Supremo da Revolução, formado pelos ministros militares que assinaram o primeiro Ato Institucional (AI-1).


Nesse primeiro Ato Institucional lia-se: “O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução” (grifos nossos). Ao longo desse decreto, a palavra “revolução” é reiterada quinze vezes, geralmente acompanhada de algum adjetivo engrandecedor.

Passados os anos, algumas revisões na forma como esse momento seria lembrado ocorreriam dentro da própria memória militar. O coronel Ustra, por exemplo, em seu livro de 2006, preferia referir-se à destituição de João Goulart como uma contrarrevolução. Talvez essa opção fosse uma maneira de reforçar um argumento muito presente na narrativa militar: o de que a ação dos militares teria sido, na verdade, uma reação, uma medida inevitável para impedir que a “esquerda” fizesse a sua revolução. Mais recentemente, as novas direitas têm optado pelo termo “contragolpe”.


No campo das esquerdas e das vítimas do regime, há muitos anos existe consenso em torno do termo “golpe” para se referir à tomada do poder pelos militares em abril de 1964. O termo foi endossado dentro do debate historiográfico e também é utilizado por muitos cientistas políticos e juristas que se debruçaram sobre o imbróglio criado pelas manobras institucionais que possibilitaram a deposição de João Goulart.

Para os militares e a nova direita, a intervenção das Forças Armadas na política foi necessária para impedir um “golpe comunista” que estaria sendo tramado por forças de esquerda aliadas do presidente João Goulart.


Essa narrativa se apoia no contexto geopolítico mundial (Guerra Fria e a Revolução Cubana cinco anos antes) e no histórico sentimento anticomunista presente nas Forças Armadas e em segmentos da sociedade brasileira. Nessa perspectiva, os militares teriam salvado o Brasil da “ameaça comunista”.

Não é objetivo deste artigo contra-argumentar ponto a ponto as alegações negacionistas. A pesquisa historiográfica e as análises empreendidas por profissionais da área têm contribuído bastante para desmistificar o “perigo comunista”. Estudos publicados por Rodrigo Patto Sá Motta (2002), Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes (2014), Carlos Fico (2014) e Heloísa Starling (2015) são algumas referências importantes.


Na mídia, destacam-se as entrevistas de Carlos Fico para o Café História e Rodrigo Motta para a agência Pública, um pequeno vídeo de Felipe Figueiredo para o canal Xadrez Verbal, além de uma série de reportagens, entrevistas e seminários realizados em 2014 pela Univesp TV na ocasião dos 50 anos do golpe.

No campo da memória social e da história pública, as discussões são mais acirradas. Há disputas até pelo dia em que o golpe teria ocorrido. Os militares consagraram o 31 de março para sua “revolução”, mas a cronologia dos fatos coloca outras datas em evidência. Acredita-se que seria mais difícil legitimar sua ação no imaginário social se as Forças Armadas aceitassem que o golpe ocorreu no dia 1º de abril, popularmente conhecido como “dia da mentira”.

NEGAÇÃO 2: (NÃO) FOI DITADURA


Ao negar o golpe, durante audiência realizada em 2019 na Câmara dos Deputados, o chanceler Ernesto Araújo disse que a deposição de João Goulart “foi um movimento necessário para que o Brasil não se tornasse uma ditadura” (grifo nosso). Portanto, o chanceler também negava que aquilo que se seguiu nos anos posteriores ao golpe tenha sido uma ditadura, assim como fez alguns dias depois seu colega, o ex-ministro Ricardo Vélez Rodríguez, ao chamar a ditadura de “regime democrático de força”.


Não se pode negar a tendência autoritária de alguns grupos que apoiavam João Goulart ou que se opuseram ao golpe e aos governos militares (bem como não se pode negar que tendências autoritárias estiveram presentes, com mais ou menos força, ao longo de toda a história política brasileira).


Mas há pouquíssimos indícios para se afirmar que tais grupos teriam alguma possibilidade prática de instaurar uma “ditadura de esquerda”, como argumentam aqueles debatedores em busca de justificativas para a intervenção militar e o recrudescimento do regime. O engajamento de setores de esquerda na luta armada só se efetivou como opção quando a ditadura já havia obstruído os canais constitucionais de participação política.

Há outros argumentos utilizados para negar que ocorreu uma ditadura no Brasil entre 1964 e 1985, como por exemplo: a mudança política operada em 64 teria se realizado no âmbito constitucional, decidida no Congresso e com eleição indireta; houve rotatividade de poder; os presidentes da República foram eleitos; o Congresso continuou funcionando; havia partidos políticos; havia liberdade de expressão (música, teatro, livros, imprensa, universidades etc.).


Tais argumentos, contudo, são mera reiteração da propaganda do regime, que buscava esconder sua face ditatorial e produzir uma aparência de normalidade constitucional. Os próprios atos institucionais visavam dar legitimidade ao regime ao mesmo tempo que estabeleciam restrições políticas e civis.


Vários historiadores e historiadoras também já se debruçaram sobre essa questão. Além dos estudos indicados anteriormente neste artigo, poderíamos ainda mencionar os trabalhos de Daniel Aarão Reis (2000, 2014), Marcos Napolitano (2014) e Rodrigo Patto Sá Motta (2015) como referências importantes para compreender a relação da ditadura com as instituições do país, a sociedade civil e o universo cultural.

NEGAÇÃO 3: (NÃO) TINHA ESSA "SAFADEZA" TODA!


Alguns setores mais conservadores da sociedade estão sempre evidenciando algumas situações atuais para desenhar um quadro catastrófico de crises – seja no campo econômico (inflação, desemprego etc.), político (falta de representatividade, corrupção etc.), social (violência, insegurança, questões de gênero e sexualidade etc.) ou cultural (moralidade, costumes, educação etc.) – e degeneração total que muitas vezes esses grupos associam ao período pós-democratização. Enfim, essa “safadeza” toda que está aí, como gostam de dizer.


Para tais setores essas coisas todas não existiam 30, 40 anos atrás, ou seja, na época da ditadura. O saudosismo em relação aos governos militares geralmente se baseia em um período marcado por forte crescimento da economia e que ficou conhecido como “milagre econômico”.


De fato, entre 1967 e 1973, a economia brasileira nunca cresceu tanto. Mas especialistas têm mostrado que esse milagre não foi sentido pela maior parte da população e o regime militar agravou problemas econômicos e sociais que persistem até hoje. No fim das contas, a política econômica do período teve consequências desastrosas.


Ah! Mas... não tinha corrupção! Não tinha ou não se ouvia falar? É bom lembrar que os mecanismos de fiscalização e controle eram frágeis e a imprensa não tinha liberdade para divulgar informações desfavoráveis ao governo.


Mesmo assim, há vários casos de corrupção conhecidos que ocorreram durante a ditadura civil-militar, envolvendo desde agentes públicos e políticos da base de sustentação do regime até grandes empresas e empreiteiras.


Tá bom, mas naquele tempo a educação era melhor! Aqui o argumento é puro saudosismo. Para quem acha que educação é doutrinação e tudo bem um regime político censurar e perseguir professores, talvez a educação fosse melhor mesmo nos tempos da ditadura. Em relação à qualidade de ensino e à política educacional, há muitas controvérsias. Mas o tema “educação na ditadura” é bem amplo e demandaria uma série inteira de artigos para discutir as diferenças em relação à educação no período pós-democratização.


Para finalizar, o fato é que autoridades com tendências autoritárias têm descrito a educação no Brasil como uma balbúrdia. As ciências humanas - em especial a área de História - seriam as principais causadoras dessa situação ao questionar as tradições e insistir na lembrança dos crimes praticados pelo regime político que zelou por valores patrióticos. Nesses tempos de saudosismo e negacionismo histórico, são ainda maiores os desafios postos às professoras e professores de História.


 

Estes são os sete artigos que compõem a série sobre ensino de história da ditadura no Brasil:


37 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page