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Colonialidade contestada: que monumentos estamos erigindo em nossas aulas?

Atualizado: 25 de jun. de 2020

O que fazer com as estátuas de personagens ligadas à experiência colonial? Devem ser derrubadas porque exaltam genocidas? Devem ser preservadas porque guardam a memória e representam a História? A pergunta mais interessante talvez seja: o que os ataques às estátuas expressam sobre o momento histórico em que vivemos?

Nas últimas semanas, o debate em torno das estátuas – na esteira dos protestos antirracistas em várias partes do mundo – esteve presente nos jornais e nas redes sociais. A repercussão do episódio de Bristol desencadeou um movimento global de ataques a estátuas identificadas com a colonização, a escravidão e o racismo. Esse movimento chamou a atenção da opinião pública e demandou a participação de profissionais da História na discussão.


Se a postura inicial da mídia foi de condenar esses atos, classificando-os como vandalismo ou depredação de patrimônio público, a tendência entre os historiadores e historiadoras foi de tentar mostrar que a questão é mais complexa. Até o Máquina dos Tempos participou dessa discussão com um belo artigo da historiadora Amanda Martins sobre o assunto.


Não vou entrar nos meandros desse debate, pois quero chamar a atenção para questões mais gerais, mas proponho fazer um retrospecto aqui das intervenções mais interessantes com as quais me deparei nas mídias digitais nas últimas semanas.


A primeira a destacar é uma thread feita no Twitter, no dia 12 de junho, pelo perfil “Mais História, por favor!”, canal de divulgação científica vinculado ao Laboratório de História Pública da Universidade Federal de Santa Maria. No dia seguinte, a historiadora Caroline Silveira Bauer (UFRGS) publicou o artigo “Homenagear quem?” em resposta a textos veiculados na imprensa. No dia 17, a revista eletrônica HH Magazine também entrou no debate com um texto do historiador Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior (UFRN), abordando a questão sob variados pontos de vista.


Uma intervenção bastante contundente partiu do blog Conversa de Historiadoras, que produziu um dossiê sobre as estátuas com a colaboração de várias professoras universitárias da área: Hebe Mattos (UFF/UFJF), Mônica Lima (UFRJ), Ana Flávia Magalhães Pinto (UnB), Martha Abreu (UFF) Keila Grinberg (UNIRIO) e Giovana Xavier (UFRJ).

O assunto deve continuar repercutindo nos próximos tempos e ainda vai ensejar mais debates públicos, até porque se trata de uma questão intimamente ligada a uma percepção cada vez mais presente nos dias de hoje, que é a percepção de que ainda é preciso resistir à colonização.


Da colonização à colonialidade


Todos nós sabemos que os impérios coloniais não existem mais. A maior parte das colônias europeias em território americano se tornou independente entre o final do século XVIII e o início do século XIX. Na África e na Ásia, houve intensos movimentos de descolonização no século XX.


Apesar disso a experiência colonial ainda é muito presente no mundo todo. Não estou me referindo à presença da colonização em si, mas ao que muitos estudiosos chamam de colonialidade.


Desde o século XVI, países europeus lançaram-se ao empreendimento colonial, que não se resumiu à expansão econômica, mas implicou uma dominação política e a imposição de uma visão de mundo.


O modo particular como povos europeus representavam o mundo foi imposto aos povos de outros territórios como o único modo possível, como se fosse o modo universal, subjugando como inferiores ou destruindo outros modos particulares de ver e representar o mundo. É o que se costuma chamar epistemicídio: a morte de formas de pensar e conhecer diferentes daquela que se torna hegemônica. Isso foi fundamental para o que chamamos de eurocentrismo.

Até hoje vemos como natural e universal tudo o que foi produzido pelos europeus: a filosofia e as ciências europeias (Aristóteles, Platão, Descartes, Galileu, Locke, Kant, Hegel etc.), as formas de organização política europeias (monarquia, república, democracia etc.), e as formas de organização da sociedade e da economia (patriarcado, direito romano, capitalismo, sistema financeiro etc.) – tudo baseado em pressupostos básicos que herdamos da Europa e que se afirmaram a partir da subjugação e da eliminação de outros modos de pensar, agir e organizar o mundo.


Talvez o ataque às estátuas não seja um mero acerto de contas com o passado; não seja apenas uma vingança retroativa contra genocidas que já não estão mais entre nós. Acho pertinente ver esse movimento como um sintoma do nosso próprio tempo, quando encaramos de frente a experiência da colonialidade. Questionamos seus pressupostos e nos voltamos contra seus pilares. Os monumentos erigidos pela memória oficial nos mostram que a colonização acabou, mas um dos pilares de seu projeto foi bem sucedido: continuamos com nossa razão e nossos afetos colonizados.


Resistências a esse projeto nunca deixaram de existir. Da crítica ao racismo, ao patriarcado e à dominação econômica surgiram, com base em referências múltiplas, formas de pensar que contestam o pensamento hegemônico construído a partir dos referenciais europeus. Assim, a resistência de grupos subalternizados fez emergir projetos alternativos que dialogam entre si. O que esses projetos têm em comum é a afirmação da existência de tradições culturais desprezadas pela modernidade colonial.

As aulas de História para além da colonialidade


A maneira como construímos o conhecimento histórico vem sofrendo muitas transformações desde a primeira metade do século XX. Cada vez mais abandonamos a ênfase nos grandes eventos e nas grandes personalidades políticas. A historiografia das últimas décadas lançou luz sobre o cotidiano e sobre os vencidos, os esquecidos, os subalternos, os de baixo, enfim, buscou-se escrever a História a contrapelo, como propunha Walter Benjamin.


Trabalhadores e trabalhadoras nos campos e nas fábricas, pessoas escravizadas, mulheres, crianças abandonadas, gente comum, hereges, pessoas marginalizadas, indígenas, quilombolas e mais tantas outras personagens e grupos étnicos e sociais passaram a receber mais atenção da investigação histórica, passaram a ser observados de outros modos e influenciaram o próprio jeito de pensar e escrever a História.

O ensino de História também foi afetado por essas transformações. Os livros didáticos buscaram acolher os novos temas da historiografia. Na tentativa de superar o eurocentrismo, as leis 10.639/2003 e 11.645/2008 tornaram obrigatório o ensino de História afro-brasileira e indígena. As aulas de História estão incorporando essas mudanças não apenas como um movimento de cima pra baixo, mas também como uma demanda de professores e estudantes.


Mas as mudanças na História que é ensinada são insuficientes. Na perspectiva de superar a colonialidade, a própria maneira de ensinar a História precisa sofrer alterações. Como fazer isso se a própria disciplina História vem de uma tradição europeia? Os embates em torno da BNCC estiveram envolvidos nesses dilemas contemporâneos.


A perspectiva decolonial nas pesquisas em ciências humanas vêm tentando construir alternativas interessantes nesse sentido. No Brasil e na América Latina, há esforços de pesquisadores da área de ensino de História em dialogar com o que se denomina pensamento decolonial. Vejo que seria muito proveitoso se nós, professores e professoras de História, tomássemos parte nesse debate para repensarmos as nossas aulas de História. Seria uma ótima oportunidade para derrubar os sólidos monumentos que erigimos em nossas práticas didáticas.

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