Este ano, mais especificamente em 13 de julho, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado em 1990, completou trinta anos. Sendo alvo de setores ultraconservadores da sociedade brasileira nos últimos tempos, o estatuto garante saúde, moradia, proteção e educação para crianças até os 12 anos de idade e adolescentes até os 18. Um dos seus mais polêmicos pontos é o direito à ressocialização para menores de idade infratores em conflito com a lei. A escola, tornando-se uma obrigatoriedade nesse contexto, já que o adolescente passa a estar sob a tutela do Estado, traz ao ensino de História um enorme desafio. Será que tratá-la de maneira convencional é possível? Ou ainda, quais instrumentos ela nos proporciona?
O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma conquista social, construído no chamado processo de redemocratização, no período de transição pós ditadura civil-militar. Podemos inclusive considerá-lo um dos principais pilares da Constituição, já que, de modo geral, ela iguala crianças e adolescentes perante a lei, e uniformiza a maneira como o estado brasileiro deve enxergá-los e tratá-los. Mesmo que, na prática, sendo o Brasil um dos países mais desiguais do mundo, esse tratamento igualitário não aconteça.
Na teoria, o ECA garante à infância e à adolescência direitos reconhecidos para suas especificidades, necessidades e vivências. Ou seja, o direito do indivíduo de ser criança e adolescente. Sujeitos em construção onde o meio em que vivem e a sociedade como um todo têm responsabilidade para com este desenvolvimento. Os direitos humanos e a declaração universal se fazem presente neste estatuto.
Mas o que o ECA estabelece para menores infratores, em uma sociedade que encarcera parte de sua população que, por fatores múltiplos, históricos e sociológicos, cai na criminalidade? Ou seja, uma sociedade punitiva. Como ela lida com esses menores- infratores? O que diz o estatuto em relação à sentença neste caso? Como se dá o processo de readequação para a vida em sociedade nestes indivíduos?
"internação constitui medida privativa de liberdade,sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”[1].
De maneira objetiva, o ECA define que o adolescente menor infrator deve ser cautelado com uma medida punitiva que seja ao mesmo tempo educacional. Uma vez que a educação, a escola, é uma obrigação do Estado, ele deve garantir que a medida funcione em uma lógica que seja, sobretudo, de recuperação do individuo social. Se o estatuto entende a educação como um processo essencial para o individuo se inserir no meio social, se este indivíduo vem a cometer um ato infracional, é preciso entender que este processo de inserção educacional falhou, logo a responsabilidade é também social, afinal este processo não foi eficiente. Dessa forma, a educação, o ensino, constituem o principal eixo da medida socioeducativa no sistema punitivo para adolescentes no Brasil. Em sua essência, este sistema de ressocialização busca respeitar o processo formativo desse individuo, e o enxerga em processo de construção subjetiva de sua identidade.
Bom, sendo a escola um dos pilares da medida socioeducativa, o ensino precisa compreender que a experiência de vida desses educandos demanda um olhar diferenciado. Muito mais do que um encantamento necessário de ser despertado em qualquer educando, é preciso resgatar alunos que, muitas vezes, por muito tempo estavam afastados da escola.
E a História? E o ensino de História? Com suas habilidades e competências, como ela pode ajudar neste processo? Existem desafios, inúmeros no caso da disciplina, mas será que algo presente nela pode fornecer instrumentos para que esse indivíduo formule essa nova experiência que significa a internação? A privação de liberdade pode significar múltiplas camadas de desorganização psicológica e porque não cognitiva da realidade. Os mecanismos nos quais a disciplina História se constitui pode ajudar a elaborar essa experiência para adolescentes em medidas socioeducativas?
Do meu ponto de vista, a partir da experiência como docente em algumas unidades socioeducativas de Belo Horizonte, na Escola Estadual Jovem Protagonista, acredito que a consciência histórica é o elemento que deve ser observado de maneira mais diferenciada. Tanto no que tange ao que se apresenta pelos adolescentes, quanto à maneira de elaborá- la e problematizá-la. Antes de mais nada, vamos definir o que estou chamando aqui de consciência histórica:
Para Jorn Rüsen, importante pensador alemão, a consciência histórica é inerente ao ser humano. Sua construção é feita em diversos âmbitos que vão além da sala de aula. Desta maneira, ela existe independentemente de se conhecer ou não o passado. A consciência histórica para Rüsen busca articular passado, presente e futuro, formando uma narrativa na qual o sujeito possa se organizar no tempo-espaço. Essa construção possibilita não apenas a organização temporal, como o reconhecimento do sujeito como pertencente e organizador dessa temporalidade.
O que irá acontecer com os estudantes do sistema socioeducativo é que muitas vezes, o conteúdo, a narrativa presente em determinada história convencional, não dialoga com a vivência dos educandos. O repertório de vida trazido por eles, dentro dessa perspectiva, é permeado sim, por uma vasta consciência histórica, elaborada a partir de uma vivência muitas vezes excluída do que a sociedade tem como parâmetro de normal. São repertórios singulares, e dentro da marginalidade social, tentar enquadrar o reconhecimento nas temáticas abordadas pela disciplina se faz necessário, já que é preciso obedecer às diretrizes curriculares. Ou seja, também é necessário que o aluno se compreenda como pertencente a um passado social comum. O que pode permitir também que ele venha a construir socialmente um futuro dentro de um meio social coletivo. Dentro deste norte é preciso que esse jovem entenda que essa consciência histórica de fato existe, e que ela pode ser narrada com o repertório por ele trazido a partir de suas vivências. Torna-se necessário construir uma ponte entre o processo de construção histórica comum, o inerente ao humano, e aquele cientifico, já legitimado pela própria disciplina História. A consciência histórica partilhada em determinada cultura e sociedade. A mesma na qual adolescentes privados de liberdade necessitam se inserir novamente.
Na realidade de adolescentes em medida socioeducativa, alguns conceitos tem significados adversos do comum. Estado, cidadania, liberdade, politica, guerra, são algum deles. Tratando-se, em sua grande maioria, de alunos em condições sociais mais baixas, o estado não chega até eles da mesma forma, com a mesma eficácia. O sentido de cidadania não é por eles experimentado de forma ampla. Já no caso de guerra e política, a singularidade se encontra no aspecto de que a vivência proporcionada pelo tráfico de drogas abrange conflitos por eles muitas vezes experimentado de forma intensa. Muitos alunos se encontram em meio a conflitos de famílias envolvidas com tráfico de drogas, herdam constantemente dívidas ocasionadas pelo comércio ilegal de drogas, e estão sob juramento de morte. O significado da palavra e a vivência muitas vezes não é correspondente àquele presente no livro, embora tenham certa vivência destes conceitos.
Com este ponto de partida, o da concepção teórica de formulação da consciência histórica como algo em constante elaboração, como o ensino pode ser um aliado no processo de ressocialização?
Acredito que a escolha das temáticas a serem trabalhadas, a forma como devem ser abordados os conceitos e categorias temáticas não devem ser deslocadas destes sentidos construídos pelos educandos em suas realidades adversas. Um dos caminhos encontrados foi trabalhar por eixos temáticos: cultura, politica, guerra, arte, leis, etc, para depois direcionar para as diferenças temporais, os objetos de conhecimento recortados por períodos.
Um dos filmes mais bens sucedidos para a relação de consciência histórica e identidade foi a produção nacional Besouro. O filme foi bem recebido por quase todos meus educandos. Sua narrativa se passa na década de 20 na Bahia, e tem como personagem principal Manoel, um jovem negro, que desde a infância tem uma forte ligação com a capoeira. O filme penetra em várias nuances culturais do país, entre elas a mística das religiões da umbanda e do candomblé.
O filme, além da questão cultural que permite ao aluno uma aproximação, traz uma abertura para que sejam tratadas questões acerca da história do Brasil. Como por exemplo o pós abolição, e a falta de direitos trabalhistas para negros, que por este motivo ficariam privados de constituir riqueza. Tema este fundamental para compreensão do racismo estrutural no Brasil, do qual muitos deles acabam sendo vítimas e por isso mesmo envolvidos com a criminalidade.
Outra estratégia eficiente foi uso de músicas, como o rap nacional. Comum entre os educandos do sistema socioeducativo é a popularidade das músicas “Diário de um detento” e “Vida Loka” do grupo Racionais MC´s. O reconhecimento identitário que elas trazem é intenso. Transformei as letras da música em material didático junto aos alunos dos 8º e 9º anos para quem pudéssemos trabalhar os eixos temáticos: cultura e política. Permiti, em um primeiro momento, a apreciação juntamente com a leitura da letra, seguida da escolha de um trecho que mais chamasse a atenção. Feito isto, pedi que identificassem todos os sujeitos sociais que a música relata e foram apontados: Estado, policiais, detento, mãe, pastor, moleque. Em seguida pedi que identificassem os problemas sociais que ela apresenta: falta de justiça, pobreza, corrupção por parte da polícia. Feita esta aproximação, tornou-se possível um reconhecimento do mundo social no qual temas como crise da democracia, seguido do próprio conceito de democracia, mundo globalizado, racismo, segregação racial foram mais bem enfrentados.
Vários recursos didáticos são possíveis partindo da noção de que é necessário um entrecruzamento de repertórios e principalmente de que a consciência histórica é elaborada independentemente do conteúdo, sendo um recurso efetivamente metodológico. Durante as minhas aulas, meu primeiro esforço se voltou para a necessidade de que os educandos(as) pudessem se reconhecer como sujeitos dotados de determinada historicidade. Isto é: que eram sujeitos detentores de passados, presentes e futuros possíveis. Uma das atividades elaboradas foi o uso da linha do tempo individual, onde eles organizaram suas vidas em passado presente e futuro. Ao saber que suas histórias e experiências mais individuais poderiam ter valor em uma sala de aula (esta era uma atividade em que impus a avaliação com distribuição de notas) isto elevava a estima dos educandos e contribuía para o processo de percepção de sua própria historicidade. Uma vez que os alunos se perceberam como portadores de um passado, à medida que a convivência em sala de aula ia ganhando maior efetividade, o interesse pelo passado abordado em sala também ia aumentando.
Por fim, é preciso concluir que o socioeducativo é um espaço que precisa do olhar diferenciado, em construção coletiva, sociedade, estado e escola. A preservação do ECA é também a garantia da ressocialização de adolescentes que tiveram infâncias e adolescências roubadas pela criminalidade, fruto da desigualdade social. Ressocializar adolescentes (para onde talvez, nunca tenham de fato sido socializados, algo que uma colega parceira no socioeducativo me alertou) é um processo
no qual a sala de aula deve ser primordial, não apenas o começo, nem o fim, mas um meio em que a História permita ao sujeito que ele se reconheça como produtor e ordenador de passado, presente e futuro. Neste momento em que, no Brasil, a legitimidade da disciplina História está em constante ameaça e que a possibilidade da redução da idade para cumprimento de pena se efetive, reduzindo assim a maioridade penal, constatar a importância do ensino aprendizagem no sistema socioeducativo, torna-se primordial.
Referencias bibliográficas
RÜSEN, Jörn. Aprendizado histórico. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão Rezende (org.) Jörn Rüsen e o ensino de História.Curitiba: Ed. UFPR, 2010.
Rüsen, Jörn. O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica: uma hipótese ontogenética relativa à consciência moral (In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão Rezende (org.) .
Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2010. SECRETÁRIA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Diretrizes pedagógicas para o atendimento.
[1] O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei no 8.069/90, artigo 121.
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