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Antirracismo nas aulas de história: por que vidas negras importam?

Todas as vidas importam. Sim, isso é tão óbvio que nem precisa ser dito. A menos que você não consiga ir além dessa obviedade, recomendo um esforço para refletir sobre o porquê do lema “vidas negras importam”. Outra coisa óbvia: proferir esse lema não significa se importar menos com as vidas brancas. Dizer que vidas negras importam é chamar atenção para o fato de que nossa sociedade aprendeu a desprezar vidas negras e precisamos urgentemente desaprender isso.

Manifestantes em Washington, DC, 6 de junho de 2020 (Foto: Samuel Corum / Getty Images / AFP)

Quando o tema “raça” ou “racismo” surge na sala de aula, é comum algum aluno ou aluna dizer: “raça não existe” ou “quem tem raça é cachorro”. A molecada sabe muito das coisas! É verdade, a ciência já provou que, do ponto de vista biológico, raça não existe.


Mas, no dia a dia, na rua, na relação com os outros, na vida em sociedade, a gente bem sabe diferenciar as pessoas por características fenotípicas atribuídas a alguma origem étnica. A cor da pele, o cabelo e os traços fisionômicos são as mais marcantes. E é muito comum que a gente deduza, de acordo com essas características, que tais pessoas ocupam um determinado lugar social.


Façamos o seguinte experimento com estudantes da Educação Básica:


1) apresentar um conjunto de imagens de pessoas que representam certa diversidade étnica/racial – podem ser fotografias de pessoas ou mesmo ilustrações (como a imagem abaixo).


2) apresentar um conjunto de ocupações profissionais ou condições sociais: pedreiro/pedreira, médica/médico, policial, presidiário/presidiária, mecânica/mecânico, professor/professora, estudante, dançarino/dançarina, faxineiro/faxineira, ambulante, advogado/advogada, pessoa em situação de rua etc.


3) solicitar que escolham a qual profissão/condição corresponde cada personagem.

O resultado desse experimento oferecerá uma boa oportunidade de reflexão sobre como a questão da raça está presente na nossa sociedade: é provável que haja maior incidência de personagens negros entre as indicações da garotada para as categorias mais subalternas ou marginalizadas.


Mesmo que essa tendência não se confirme, o experimento possibilita indagar aos participantes se é comum ver pessoas com aquelas características físicas ocupando cada posição escolhida. Olhar ao redor e observar o corpo docente da própria escola é um gesto bem simples que também favorece a discussão proposta.


A conclusão desse debate inevitavelmente será de que o conceito de raça, embora biologicamente infundado, precisa ser analisado do ponto de vista sociológico. A partir daí, podemos nos perguntar por que pessoas brancas ou negras ocupam determinados lugares sociais. É só uma questão de “capacidade” ou existe uma construção histórica que acabou por produzir essa desigualdade?


Em geral, a garotada sabe desde cedo que a população negra tem ascendência africana. Mas antes de relacionar esse tema com a África, vamos interromper AGORA essa leitura para fazer um teste. PARE: não continue lendo o próximo subtítulo deste texto sem antes clicar neste LINK e realizar o teste. É muito rápido. Não é preciso fazer cadastro nem informar seus dados. Basta marcar as respostas no Google Formulários.

África, estereótipos, colonialidade e racismo


Ainda sabemos muito pouco sobre o continente africano. Mesmo com os quase 20 anos de vigência da lei 10.639/2003 e a profusão de materiais de apoio didático sobre história da África, professores e professoras continuam tendo dificuldade para trabalhar com temas relacionados ao continente. É difícil fugir dos estereótipos e certos assuntos parecem desconfortáveis.


O teste proposto acima é inspirado nas visitas mediadas ao Museu Afro Brasil, onde os educadores costumam propor um exercício interessante: mostram fotografias de lugares do continente africano e pedem para os estudantes responderem quais daquelas fotografias foram feitas na África. Em geral, a garotada indica as paisagens de deserto, floresta ou pobreza, descartando as que sugerem espaços urbanos e desenvolvimento econômico mais alinhados com os padrões capitalistas. No final, revelada a resposta, a surpresa é geral. Todas as fotos são da África.


Temos uma imagem estereotipada da África que é produzida pelas mídias. Ninguém nega que haja inúmeras mazelas sociais em grande parte do continente, cujos índices de desenvolvimento humano são preocupantes, mas a enorme diversidade de povos, culturas, organizações políticas, dinâmicas sociais e econômicas, paisagens e biomas de um continente inteiro não pode se reduzir à fome e às guerras civis, muito menos às savanas e aos grandes mamíferos.


O pior e mais enganoso dos estereótipos é a associação da África a um suposto primitivismo. Por não conhecer ou não reconhecer a riqueza cultural dos povos africanos, os europeus tomaram tais povos como incivilizados e justificaram todas as suas intervenções, o que produziu a maior parte das mazelas do continente.


O racismo, que ganhou contornos científicos no século XIX, contribuiu para subjugar populações inteiras. Os empreendimentos coloniais na América já haviam transformado corpos negros em coisas – mercadorias entulhadas em porões de navios e cuja boa parte se perdia nos longos percursos marítimos sem grande prejuízo para mega traficantes ingleses (como Edward Colston), portugueses (como Pereira Marinho) e de outras nacionalidades europeias.


A abolição do escravismo se fez sem qualquer reparação aos libertos e seus descendentes, que resistiram nas margens do sistema político e econômico vigente, pelejando por suas existências e subjetividades quase a contragosto de quem se beneficiou da mão de obra negra, indígena ou mestiça nas mais variadas formas de exploração.


Genocídios, etnocídios, epistemicídios assolaram o povo negro na África e nas Américas, enquanto nossas mentes colonizadas direcionaram nossos sentimentos mais positivos para o hemisfério norte. Admiramos o progresso da Europa e seus triunfos mundo afora. Aceitamos a supremacia branca a ponto de subsidiar a imigração de europeus para nos civilizar e embranquecer. Acabamos aprendendo que vidas negras importam menos (por mais que recusemos e condenemos esse aprendizado).

Basta não ser racista?

Ainda dá tempo de desaprender algo que foi construído ao longo de tantos séculos e ao custo de tantas vidas? Sem uma postura antirracista, certamente que não. Reaprender a forma como lidamos com as relações étnico-raciais exige empenho e muito estudo.


Um bom jeito de começar é pela leitura do Pequeno Manual Antirracista da filósofa Djamila Ribeiro. Para ela, é fundamental falar sobre o assunto: “reconhecer o racismo é a melhor forma de combatê-lo. […] A palavra não pode ser um tabu, pois o racismo está em nós e nas pessoas que amamos – mais grave é não reconhecer e não combater a opressão”.


Ao longo de nossas vidas, acreditamos que não ser racista era não falar sobre as raças, enquanto o nosso corpo branco involuntariamente se movia com desconfiança quando entrava um preto no ônibus. Não é culpa nossa, a sociedade é assim e o racismo é estrutural. Verdade, mas quem está falando de culpa? Recorramos novamente às palavras de Djamila: “Não se trata de se sentir culpado por ser branco: a questão é se responsabilizar. Diferente da culpa, que leva à inércia, a responsabilidade leva à ação”. Por isso, é dever de todos combater o racismo.


Temos que aguçar a nossa percepção para identificar o racismo no cotidiano e nas nossas próprias ações, mesmo aquelas que julgamos tão benevolentes. “Ainda que uma pessoa branca tenha atributos morais positivos – por exemplo, que seja gentil com pessoas negras –, ela não só se beneficia da estrutura racista como muitas vezes, mesmo sem perceber, compactua com a violência racial”, completa a já citada filósofa em seu pequeno, porém necessário, manual.


Se o racismo é estrutural, precisamos estar atentos a como nos acoplamos nessa estrutura e promover ações que contribuam para desmantelá-la. O silêncio certamente não ajuda. Fingir que racismo não existe, dizer que “só há uma raça humana” ou que “não vejo cor” é perpetuar o racismo e lavar as mãos com o sangue de Miguel, João Pedro, George, Jenifer, Kauan, Evaldo, Ágatha, Bianca entre tantos outros e outras que sofreram e sofrem com a violência racial. Em suma, não tem como não ser racista sem adotar práticas antirracistas.

Ensino de história antirracista


O mundo apresentado nas aulas de História é majoritariamente o mundo dos brancos, com todos os referenciais eurocêntricos. Assim, reforçamos a ideia de que é desse mundo que todos nós fazemos parte, mesmo que nem todos ocupem o “palco principal”.


O aluno branco, que já está acostumado com a primazia de rostos como o seu nos espaços de poder ou na tela da TV, se reconhece nesse "palco principal" da História e rapidamente entende que os outros atores – os não brancos – são coadjuvantes. Abrir mão desse protagonismo aparentemente natural, que foi dado assim de mão beijada, é muito difícil.


Mas e o aluno negro? Como se vê nesse mundo? Como se constitui essa subjetividade num mundo que de antemão já o coloca num lugar em que ele é o outro? Eu não sei dizer muito sobre isso, mas tenho tentado entender um pouco a partir do que meus próprios alunos e alunas expressam ou da escrita que autoras e autores negros têm feito de si. Vidas negras inspiram!


Em sala de aula, não reduzir a história dos africanos e das pessoas negras à experiência da escravidão é um bom começo, mas devemos levar essa iniciativa adiante e encará-la como algo urgente. É preciso falar da diversidade dos povos da África, sobretudo de seus conhecimentos e do protagonismo que assumiram em vários contextos históricos. Também é preciso falar de personagens negras – não só das que sofreram ou resistiram à escravidão, mas de escritores, artistas, lideranças religiosas e políticas, filósofos e cientistas negros.


Estudantes da Educação Básica precisam ser estimulados a falar sobre o racismo. Aliás, a garotada quer falar sobre isso! Lamentavelmente, a questão racial ainda costuma ser desconfortável para a maioria dos professores e professoras, acostumados que somos a “não ver” a cor das pessoas. Citando novamente Djamila Ribeiro: “Vejamos cores, somos diversos e não há nada de errado nisso”.


Nas aulas de História, acabamos por reforçar discursos homogeneizadores que só serviram para cimentar o racismo. Temos que rever isso. O "palco principal" do mundo apresentado pelos professores e professoras de História precisa ter protagonistas negros, indígenas, mestiços, brancos, com deficiências, mulheres, homens, crianças, idosos, homossexuais, transexuais, heterossexuais, colonizados, descolonizados, com escrita, sem escrita, subalternos, poderosos, ricos, pobres, com todas as suas tensões e dilemas. Um ensino de História antirracista deve se esforçar para colorir esse mundo e trazer as diferenças para o palco principal.


Se me perguntarem se minha prática em sala de aula é antirracista, eu não posso dizer que sim. No máximo, posso dizer que tenho me esforçado. Afinal, adotar práticas antirracistas não é como vestir uma roupa nova e, pronto: “tornei-me antirracista”. Como já disse antes, exige desaprender muita coisa e reaprendê-las de outros modos, sempre incorporando novas concepções e perspectivas que antes não estavam postas. É um processo longo, que demanda muitos esforços e que provavelmente não terá fim.


Para concluir, compartilho abaixo algumas dicas de leitura que podem ajudar nesses esforços. Algumas dessas leituras eu já fiz, outras venho fazendo na medida do possível e muitas eu ainda pretendo fazer para que eu consiga desenvolver, em sala de aula, práticas antirracistas cada vez mais efetivas e transformadoras. Espero que alguma dessas dicas possa ser aproveitada por quem conseguiu chegar até aqui nesta modesta maquinação.


Textos para refletir sobre as relações étnico-raciais

Educação e libertação: a perspectiva das mulheres negras – este pequeno e-book é um capítulo do livro Mulheres, raça e classe, considerado um clássico sobre a interseccionalidade e principal obra escrita pela filósofa e ativista estadunidense Angela Davis.


Nem branco nem preto, muito pelo contrário - livro da antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz sobre o racismo no contexto brasileiro. O capítulo "Raça e silêncio" tem muito a ver com algumas questões tratadas aqui neste artigo. Da mesma autora, uma obra mais acadêmica e com recorte mais específico é o clássico O espetáculo das raças, sobre como a questão racial foi tratada no campo científico entre o fim do século XIX e início do XX.


O genocídio do negro brasileiro - essa obra do escritor e ativista Abdias do Nascimento é considerada pioneira sobre o tema. Sua primeira versão foi tornada pública na Nigéria em 1977. Infelizmente, ainda não li este e nenhum outro livro do escritor, que é certamente uma das personalidades de maior relevância do cenário político e cultural do Brasil no século XX.


O perigo de uma historia única - versão em livro de uma das palestras mais assistidas do TED Talk, proferida em 2009 pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie.


Olhares negros, raça e representação – essa coletânea de ensaios críticos da teórica e ativista bell hooks certamente é uma das próximas leituras que eu farei sobre o tema. A autora tem outras obras, sempre na perspectiva da interseccionalidade entre raça, gênero e sociedade capitalista.


Pequeno manual antirracista - livro de Djamila Ribeiro, já citado neste artigo e muitíssimo apropriado para quem quer conhecer as questões fundamentais da prática antirracista; um livro voltado para a ação, organizado como um passo a passo para repensar nossa postura nas relações étnico-raciais.


Quando me descobri negra – coletânea de relatos escritos pela jornalista Bianca Santana; livro pra ler numa sentada; fácil de ler só na forma, pois a escrita leve da autora não esconde a força dos relatos. Recomendo o capítulo "Livro de (que) história (?)".


Racismo estrutural - livro do filósofo e jurista Silvio de Almeida, que se propõe a produzir uma teoria social mostrando que raça e racismo permeiam a ideologia, a política, o direito e a economia, de modo que não é possível tratar da sociedade contemporânea sem abordar a questão racial.


Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil - livro da filósofa Sueli Carneiro, uma das principais referências do feminismo negro no Brasil. Essa obra ainda está na minha lista de futuras leituras. A autora é ativista e fundadora do Geledés - Instituto da Mulher Negra, cujo portal na internet publica notícias e artigos relacionados à questão racial.


Rediscutindo a mestiçagem no Brasil - livro de Kabengele Munanga, antropólogo congolês radicado no Brasil. Tanto nessa obra como no livro Negritude, o autor discute a identidade negra. Espero ler pelo menos um desses dois livros em breve.

Textos que podem contribuir para o planejamento de aulas sobre história e cultura africana e afro-brasileira


África e Brasil africano - este livro da historiadora Marina de Mello e Souza traz um panorama da formação do continente e das sociedades africanas, o comércio de pessoas escravizadas para a América e a integração de seus descendentes à sociedade brasileira até os dias de hoje. Contém rica iconografia em cores. Obra de referência para aulas sobre o tema em todos os níveis do ensino, é fácil de encontrá-la em bibliotecas escolares.


Almanaque pedagógico afro-brasileiro - esse livro da formadora Rosa Margarida de Carvalho Rocha apresenta a professores e professoras da Educação Básica uma cuidadosa proposta de como inserir os estudos afro-brasileiros na sala de aula, contendo atividades e jogos, calendário com as datas mais importantes relativas aos temas afro-brasileiros e um manancial de informações e ilustrações cuidadosamente pesquisadas sobre personalidades negras e relações étnico-raciais.


Dicionário da escravidão e liberdade - organizado por Lilia Schwarcz e Flávio Gomes, esse dicionário temático traz verbetes escritos por vários pesquisadores renomados, sempre com foco na escravidão africana no Brasil.


História da África e do Brasil afrodescendente - esse livro da historiadora Ynaê Lopes dos Santos é uma obra de referência que eu considero fundamental e uma das mais completas como suporte para professores e professoras de História na Educação Básica.


História da África e dos africanos - este livro, escrito por Paulo Fagundes Visentini, Luiz Dario Teixeira Ribeiro e Analúcia Danilevicz Pereira, foca na política internacional e na diplomacia interafricana, abordando um aspecto da experiência do continente africano que contribui para a superação dos estereótipos ainda vigentes. O livro pode suscitar questões a serem trabalhadas numa perspectiva interdisciplinar com a Geografia, sobretudo em propostas didáticas voltadas para o Ensino Médio.


História e cultura afro-brasileira - este livro da historiadora Regiane Augusto de Matos foi escrito de forma bastante didática para auxiliar professores e professoras de História no sentido de se atualizarem quanto às pesquisas sobre a história dos povos africanos, a escravidão na América portuguesa e a trajetória de negros e negras no Brasil até a contemporaneidade.


Relações Brasil-África e Geopolítica do Atlântico Sul - este livro escrito pelo geógrafo Eli Alves Penha foca o Atlântico Sul na articulação de relações históricas que remetem ao período colonial. Como o tema central é a geopolítica entre Brasil e o continente africano na contemporaneidade, a obra pode auxiliar na elaboração de propostas didáticas para o Ensino Médio numa perspectiva interdisciplinar.


Olhar a África. Fontes visuais para a sala de aula – livro de Regina Claro composto de propostas didáticas para a Educação Básica a partir de fontes visuais (fotografias, gravuras, pinturas, imagens de esculturas etc.).


Créditos das fotografias utilizadas no teste (Google Formulários) proposto no início deste texto







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