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A(s) Metamorfose(s) de Franz Kafka: um diagnóstico dos séculos XX e XXI

Atualizado: 7 de out. de 2020

O livro A metamorfose do autor tcheco: Franz Kafka, se insere como um clássico da Literatura Internacional, não somente pela escrita, que revela a forma particular do autor - literatura que golpeia quem lê - mas, também porque nos revela as insurgências do início do século XX, momento em que o livro fora escrito. Em 1915, Kafka entrega a obra e nela uma análise a partir da surrealidade do campo irreal sobre temáticas caras ao desenvolvimento da sociedade capitalista.


De uma maneira absurda, na qual o leitor é inserido, a obra se desenvolverá em: conflitos, mudanças, incertezas, quebras de padrão e empatia. Esses elementos que, com certeza, caracterizam o período anterior à Grande Guerra (1914). Elementos que se confundem também, em claras referências, vivências de Kafka. Como por exemplo: os conflitos acerca da figura paterna.

Atelier Jacobi: Sigismund Jacobi (1860–1935).

Franz escreve sua obra compreendendo algumas características da sociedade europeia em meados do século XX. Uma delas é o individualismo, que é abordado nos três capítulos dessa história.


Começando com o Gregor Samsa - personagem principal dessa história - acordando em um dia qualquer, percebendo-se diferente e impossibilitado de sair da sua própria cama. Samsa está sobre seu primeiro conflito: sair da cama e ir ao trabalho. A família de Gregor composta por: mãe, pai e irmã (todos escritos de maneira impessoal) logo percebem que há algo estanho com seu ente, uma vez que o mesmo nunca se atrasa para o trabalho.


Nessa tomada inicial devemos entender a posição social de Gregor e sua família. Funcionário burocrata que tende a fazer viagens a trabalho (caixeiro viajante). Samsa oferece à sua família uma vida considerada classe média àquele contexto. Notamos isso a partir, por exemplo, da quantidade de cômodos na casa, a quantidade de empregadas e a estabilidade garantida pelo emprego do nosso personagem principal.


Na obra, podemos perceber como, de certo modo, Kafka exprime o modo de vida na classe média, que o historiador Eric Hobsbawm situa em seu livro: A era dos impérios (1987). Podemos pensar como era a relação não amistosa entre Gregor Samsa e os funcionários de patentes baixas como indício da separação das classes, onde o personagem de classe média está longe de ser como o proprietário da fábrica, mas também se destoa daqueles que estão mais próximos dele, os proletários.


Retomando o capitulo inicial, a família percebe algo de errado e vai em busca de Gregor em seu quarto. Gregor Samsa ainda luta para sair de sua cama, percebendo-se como animalizado em um inseto não-mencionado, mas com alguns apontamentos que instigam o leitor a pensar em que inseto nosso ele havia sido transformado. Sabe-se que era uma figura asquerosa com várias patas que podia andar pelas paredes. Entretanto, não existe um espanto notável de Samsa sobre sua própria condição. Seus temores estavam em: sair da cama, abrir a porta e sair a tempo para o trabalho ou, em caso de atraso, inventar uma desculpa que permita convencer o chefe não o demitir. Essas preocupações que salientamos marcam como a perca do trabalho, ou a ameaça da perca, significaria o declínio da família. E significou. Podendo ser observado no capitulo 2.T

Gregor Samsa, na visão de Christophe Huet.

Diante da situação exposta, Gregor atrasa-se para o trabalho e seu encarregado vai até sua moradia cobrar as devidas explicações e dizer que Samsa vá imediatamente ao trabalho. Porém, a condição animalizada de Gregor Samsa não lhe permitiu trabalhar tampouco, justificaria a ausência no trabalho. Para leitores, isso é um choque, uma vez que o que deveria causar espanto é levado com naturalidade e isso será amadurecido ao decorrer da obra.


Gregor perde o emprego e também o amor paternal. Seu pai, rapidamente, deixa de enxergá-lo como seu filho. O primeiro capítulo encerra-se com o ato de violência do pai para com o filho que se tornava inseto. O que podemos ver nos capítulos posteriores será o processo ainda maior de animalização do personagem, bem como a naturalização desse processo. Gregor Samsa, foi descartado como qualquer um nas relações de produção, o que caracteriza o capitalismo.

Ilustração de capa do livro Metamorfose, de Franz Kafka.

Acreditamos que, Kafka sintetizou e fotografou o século XX em sua obra, o não espanto de alguns personagens ou a naturalização do processo de animalização e a recorrência de atitudes violentas do pai de Gregor, aparenta-se muito com o clima vivenciado na Europa. Primeiro, a barbárie não choca e é naturalizada, podemos tomar como exemplo o genocídio armênio, o domingo sangrento (Rússia Czarista) e a grande guerra. Esses eventos aconteceram, no auge do capitalismo e da racionalidade, Kafka nos insere à uma crítica feroz ao modo de vida burguês. Assim, compreende-se a lógica do trabalho racional naquele contexto, tomando por exemplo o gerente, que é uma figura especializada e que não tolera os erros de Gregor. Pois, seria como condenar toda uma lógica de operação no trabalho afetando os outros trabalhadores.


Samsa, sem emprego e tendo na figura paternal uma ameaça à sua própria existência, coloca-se no campo das incertezas - essa que se revelará na dúvida se a sua mãe ainda o amaria. Para a família, as incertezas estavam marcadas pelo declínio econômico que têm consequências como o retorno do pai Às atividades profissionais em cargos de baixo escalão, a renda familiar sendo abalada havendo demissões de funcionárias e colocando quartos da casa para alugar. Eis o declínio descrito, ao mesmo tempo em que Gregor Samsa torna-se ainda mais um animal, comendo restos de comida e sendo seu único aporte sentimental: sua irmã. Até onde ela pôde aturá-lo, ou melhor, até onde conseguiu manter a consciência da responsabilidade em lidar com o outro. Mesmo enquanto familiar e que havia relações de afeto, tornara-se um estranho, um obstáculo. O símbolo do declínio familiar de penúria, dos seus sonhos e desejos. Isso reflete não só a sociedade da belle époque, como as angústias da vida do autor.


A vida de classe média em declínio, os anseios perdidos, a ausência de empatia que vai sendo construída sobre um ente próximo marcará a vida com um determinado sentido para Kafka. não haverá muito valor no século XX e isso será concretizado, não só no início do século, mas nele por completo. O breve século XX teve em Kafka um médico que determina sintomas patológicos de um futuro decadente. O final da obra, que não me cabe dizer, irá consagrar o diagnóstico Kafkiano.


Franz Kafka, ao diagnosticar o século XX e suas mazelas, estabelecendo uma crítica ao modo de vida burguês e a sociabilidade contemporânea, nos remete a pensar nele como um autor que contribui também para o século XXI, onde conflitos étnicos e históricos ainda se fazem presente e o imperativo individualista é preponderante, do qual aparentemente os prognósticos são negativos. Fome, miséria, morte e mais mortes vão se contabilizando e podando as perspectivas positivas (as características de Kafka são os pensamentos negativos).


As reflexões de Kafka fazem com que percebamos que no século XXI a barbárie como processo natural. E pode-se observar ainda mais, o endurecimento da sociedade e construção de aparatos apáticos que as sustentem. Se pensarmos o contexto pandêmico que vivenciamos podemos notar que a cada centena de milhar de mortos anunciados nos jornais, pouco remorso será sentido. É como se a sensação de nada de novo no front pudesse definir o sentimento de uma parcela significativa da população. Assim, cabe a pergunta deixada indiretamente por Kafka: qual o valor da vida? Até onde podemos ter como responsabilidade a vida do outro? Esse outro que nós não conhecemos ou deixamos de conhecer. Até onde vai nossa alteridade? Questionamentos que emergem de A metamorfose e que cabe a nós a reflexão.

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