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As múltiplas temporalidades de Lazzaro Felice

Atualizado: 17 de jun. de 2020

Lazzaro Felice é um filme encantador. Suas várias camadas permitem vê-lo sob aspectos muito diferentes. Nesta postagem destacamos o tempo histórico e a ambientação da narrativa.

O primeiro ato de Lazzaro Felice nos lança para um modo de vida facilmente identificável como princípios do século XX, mas alguns elementos de cena e figurino (veículos automotores dos anos 60 e 70, aparelhos telefônicos que sugerem os primeiros celulares, um walkman e personagens vestidos à moda dos anos 80) vão desmontando essa impressão inicial, colocando dúvidas sobre a época retratada e dando pistas do verdadeiro tempo histórico da narrativa.


Lazzaro (Adriano Tardiolo), o protagonista, é um camponês que vive entre outros trabalhadores e trabalhadoras rurais numa fazenda de tabaco chamada Inviolata, localizada no interior da Itália.


A precariedade material, as condições de trabalho análogas à escravidão e o regime de exploração à qual trabalhadores e trabalhadoras estão submetidos são aspectos reiterados no filme que contribuem para a confusão temporal, reforçada ainda mais pelo título de “marquesa” atribuído à patroa, Alfonsina de Luna (Nicoletta Braschi), fazendeira conhecida como “rainha do tabaco”.


Parêntese: títulos de nobreza são próprios das monarquias e o Reino da Itália deixou de existir em 1946, quando o regime republicano foi instituído após um plebiscito no país.


Tida como uma “víbora venenosa”, a marquesa de Luna mantém aqueles camponeses e camponesas sob um regime de trabalho já extinto. Os trabalhadores são seus meeiros, num sistema quase feudal. Não há leis de proteção, jornada definida nem salário. É como se aquela comunidade tivesse parado no tempo no que se refere às condições de trabalho.


Os anacronismos aparentes se explicam no meio da trama e a primeira mágica do filme é sustentar com alto realismo essa sobreposição de tempos históricos até uma ruptura fantástica. Lazzaro – o jovem ingênuo e prestativo, sem pai nem mãe, explorado por todos, até pelos demais camponeses – conhece o filho da patroa, Tancredi (Luca Chikovani), um jovem rebelde que começa a abusar da boa vontade de Lazzaro. O esforço sobre-humano para servir ao marchesino leva Lazzaro à queda, literalmente.


A partir daí, a trama tem uma reviravolta abrupta repleta de misticismo e fantasia, que só revela de modo mais cru a realidade dos trabalhadores pobres contemporâneos. A narrativa tem um salto temporal – de mais ou menos 30 anos – e também se desloca espacialmente, transportando-nos para outra ambientação: as grandes metrópoles de hoje em dia, com suas movimentadas avenidas, imigrantes em busca de sobrevivência, economia predatória, alta produção de lixo, poluição, precariedade da vida e das condições de trabalho.


No meio de tudo, o Lazzaro ressuscitado segue com a mesma disposição para ajudar e fazer o bem. Quase alheio a mudanças tão drásticas quanto absurdas, sua preocupação é reencontrar o patrão. A extrema fidelidade a Tancredi de Luna, a ingenuidade de tê-lo como fratello, já levara Lazzaro à queda uma vez e tudo se encaminha para que isso o leve a tombar novamente.


O filme foi caracterizado como uma fábula contemporânea. Pode ser tranquilamente lido como uma alegoria sobre a bondade ou o altruísmo, mas não sem uma ironia cortante. É também um filme político e cheio de simbologia. Desde a inspiração bíblica do nome do protagonista até a presença dos lobos, o filme dialoga com o imaginário popular italiano para alegorizar a luta de classes e tematizar as desigualdades e injustiças sociais.


Lazzaro Felice foi escrito e dirigido por Alice Rohrwacher. Em 2018, foi selecionado para disputar a Palma de Ouro no Festival de Cannes e faturou o prêmio de Melhor Roteiro. Está disponível em serviços de streaming.

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