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Conheça a primeira charge a motivar um processo criminal na história do Brasil

Atualizado: 5 de out. de 2020

Cartunistas brasileiros estão sendo chamados à justiça para dar explicações por sua obra. A prática de intimidar profissionais por causa de charges de jornal saiu de moda há um bom tempo, mas já foi um hábito recorrente entre autoridades no passado. Você sabe qual foi a primeira charge a provocar um processo no Brasil?

No dia 13 de junho, o jornal Folha de S. Paulo estampou matéria de página inteira para noticiar que uma entidade de policiais militares, denominada Defenda PM, acionou a Justiça para que o Grupo Folha e quatro cartunistas – Laerte, João Montanaro, Alberto Benett e Claudio Mor – explicassem charges publicadas em dezembro de 2019.


As charges (reproduzidas acima) faziam críticas à violência policial e foram veiculadas pelo jornal após a ação da PM durante baile funk na favela de Paraisópolis, que resultou na morte de nove pessoas. Seis meses depois, o jornal e os cartunistas foram interpelados pela Justiça por causa de um pedido de esclarecimento criminal feito pela referida entidade, que alegou serem as charges “constrangedoras”.


“O pedido de esclarecimento criminal é uma espécie de prelúdio de uma ação penal e, como tal, é indissociável de contornos intimidatórios”, afirmou Fernanda Mena na matéria mencionada acima. Benett, um dos cartunistas interpelados, também vê o caso como início de "uma perseguição mais acirrada contra a imprensa e o jornalismo crítico”.


Dois dias depois da matéria da Folha, os veículos de comunicação noticiaram um novo caso: o ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, pediu a abertura de um inquérito para investigar a publicação de uma charge pelo jornalista Ricardo Noblat (imagem abaixo).

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A charge é de autoria do cartunista Ricardo Aroeira, que utilizou uma suástica – símbolo associado ao nazismo – para criticar o presidente da República, Jair Bolsonaro, que havia estimulado sua militância a entrar em hospitais para filmar leitos reservados para pacientes da covid-19.


O ministro pretende incluir o jornalista e o cartunista no artigo 26 da Lei de Segurança Nacional, que considera crime “caluniar ou difamar o Presidente da República”. Para o jornalista Thomas Traumann, essa é mais uma tentativa de intimidação.


No dia 14, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) manifestou solidariedade aos cartunistas, que também receberam apoio de colegas e outros profissionais pelas redes sociais. A associação internacional Cartooning for Peace publicou um alerta em seu site, sugerindo que o Brasil é hoje o “epicentro da repressão contra cartunistas”.

Nossa história registra vários episódios de perseguição a cartunistas. Muitas charges já foram consideradas criminosas e motivaram inquéritos policiais e processos na Justiça. O costume andava meio fora de moda, mas já foi um recurso muito utilizado no passado, principalmente por autoridades políticas.


O mais antigo caso que se tem registro ocorreu em 1866. Naquele ano começou a circular um semanário satírico na cidade de São Paulo: o Cabrião, que tinha como ilustrador um caricaturista italiano chamado Angelo Agostini. O jornal estava sob direção de membros do partido liberal e direcionava críticas ao Diário de São Paulo, redigido por José Mendes de Almeida, chefe do partido conservador.


Em novembro daquele ano, o proprietário do Diário, Cândido Justiniano Silva, denunciou os proprietários das empresas que imprimiam o Cabrião: Joaquim Roberto de Azevedo Marques (Tipografia Imperial) e Henrique Schröeder (Tipografia Alemã). A queixa foi apresentada ao delegado de polícia e responsabilizava os dois tipógrafos pelo crime de "ofender a moral pública" por meio de uma caricatura denominada Cemitério da Consolação no dia de finados, publicada no sexto número do semanário (imagem abaixo).

O denunciante se baseava no artigo 279 do Código Criminal do Império, que tratava do crime policial de “ofender a moral pública em papéis impressos, litografados ou gravados, ou em estampas e pinturas que se distribuírem por mais de quinze pessoas, e bem assim a respeito destas que estejam expostas publicamente à venda”. De acordo com Cândido Silva, os mortos e enterrados no cemitério público da Consolação haviam sido ridicularizados naquele desenho.


O desenhista Agostini fazia referência à romaria do dia 2 de novembro: o Cemitério da Consolação no dia de finados representava homens de fraque e cartola, bebendo e fumando com os mortos do cemitério. Todos pareciamm alcoolizados num espécie de “fim de festa” que nada tinha a ver com um cemitério. Este era o crime. Iria julgá-lo o conselheiro Francisco Maria de Sousa Furtado de Mendonça, delegado de polícia na capital da Província de São Paulo.


Américo de Campos, diretor do Cabrião, assumiu a responsabilidade pela caricatura e inocentou os tipógrafos. Advogado, defendia-se em causa própria. Cândido Silva era representado pelo seu sócio no Diário, Mendes de Almeida. Depois de alguns dias, o conselheiro Furtado convocou as partes e suas testemunhas para audiências.


Antônio Manuel dos Reis (co-proprietário do Cabrião), o litógrafo José Maria Lisboa e o próprio Angelo Agostini tiveram que dar explicações. Alegaram que a intenção da caricatura era criticar o comportamento inadequado e desrespeitoso com que as pessoas compareciam ao cemitério e que não se pretendia atentar contra a moral pública e nem ridicularizar a religião, o cemitério e os mortos.


O embate se deu nos autos, mas também nas páginas de jornal da época. Novas charges saíram no próprio Cabrião em referência ao processo e artigos foram publicados no Diário de S. Paulo e no Correio Paulistano. Ataques de parte a parte pela imprensa contribuíam para mobilizar a opinião pública e influenciar a decisão da autoridade policial.


O promotor considerou que não houve ofensa à moral pública e compreendeu que a intenção da caricatura era “corrigir costumes, ridicularizando os atos inconvenientes daqueles que não respeitavam o cemitério público”. O parecer do promotor deixava claro não haver matéria para condenação do réu. Por fim, a sentença do delegado de polícia foi favorável ao Cabrião; e Américo de Campos foi absolvido.

Caricatura publicada no Cabrião em 16 de dezembro de 1866

Para comemorar a sentença - e fazer troça com seus delatores - o Cabrião estampou em suas páginas uma nova festa com os mortos (imagem acima). A legenda dizia: “Grande baile dado aos mortos pelo Cabrião em aplauso à feliz terminação do seu processo. (O Cabrião é um inimigo leal; perdoa as amolações, porque também amola. Só não perdoa os delatores)". Cem anos após esse episódio envolvendo o Cabrião, o historiador Antônio Barreto do Amaral publicou um artigo na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Intitulado "Curioso crime de imprensa em 1866. Um processo contra Américo de Campos”, o texto pode ser acessado no site do IHGSP.

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