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Renato Viana Boy: O que os estudos sobre Idade Média têm a nos dizer?

Atualizado: 20 de jul. de 2020

“Num mundo totalmente globalizado [...] é fundamental ter o conhecimento sobre o outro. O estudo da Idade Média é, antes de tudo, um estudo de alteridade.”

Idade Média é um período que desperta grande fascínio na imaginação social. O universo cultural está repleto de produções – filmes, séries, quadrinhos, games etc. – inspiradas ou baseadas na época medieval. Mas o quanto conhecemos sobre esse período histórico? Para conversar sobre isso, o Máquina dos Tempos entrevistou o historiador Renato Viana Boy, professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).

Graduado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor na mesma área pela Universidade de São Paulo (USP), Renato Boy vem se dedicando a estudos sobre Idade Antiga e Idade Média. Suas pesquisas envolvem o Império Bizantino, o mundo mediterrânico e a historiografia medieval. Embora jovem, o historiador atuou por muito tempo na Educação Básica, lecionando em escolas e cursinhos pré-vestibulares, antes de ingressar no magistério superior. Desde 2013, é professor efetivo da UFFS, na cidade de Chapecó (SC), onde ministra aulas para a graduação e pós-graduação do curso de História.

Nessa entrevista, conversamos com Renato Boy sobre como alguém se torna medievalista, sobre esse campo de estudos no Brasil, sobre o significado da Idade Média e sobre o ensino de história medieval. Esperamos que os leitores e leitoras apreciem!

Renato Viana Boy conversou com o Máquina dos Tempos sobre os estudos medievais (Foto: acervo pessoal)

Gostaríamos que você falasse um pouco sobre sua trajetória acadêmica. O que o levou a se tornar um pesquisador na área de História e se especializar nos estudos medievais.


Entrei para o curso de História na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) com dezoito para dezenove anos. Como muitos jovens nessa idade, eu não tinha segurança que esta seria minha profissão para o resto da vida. Uma vez no curso de História, eu e boa parte da minha turma levamos um choque de realidade, sendo apresentados a uma gama de estudos com fontes, documentos, bibliografia, língua estrangeira, diálogos interdisciplinares... tudo isso foi muito novo. Alguns se distanciaram da vontade de fazer História. Outros se apaixonaram pela novidade. Eu estava no segundo grupo. Interessava-me pela teoria, pelos estudos recentes, pelo trato com fontes e pelo ensino. A Idade Média não foi uma escolha a priori. Meus interesses e curiosidades de pesquisa foram me conduzindo a um período cada vez mais recuado e uma geografia cada vez mais distante de Mariana e Ouro Preto, onde estudava. Preocupava-me a relação entre imagens e culto religioso na Igreja cristã, seus argumentos a favor e contrários a esta prática, a ortodoxia e a produção de uma cultura imagética que era muito presente nas cidades históricas de Minas Gerais. Os debates, as heresias, os concílios da Igreja para debater a questão e todos os seus desdobramentos históricos, teológicos e filosóficos remetiam ao período medieval e, cada vez mais, ao medievo oriental bizantino. Acho que me formei enquanto historiador antes de ser medievalista. O interesse por esses problemas, aos quais me dediquei até meu mestrado, se sobrepunham ao interesse pelo recorte cronológico. Mas nesse caminho há um elemento fundamental: o nosso professor de História Medieval, Celso Taveira, tinha acabado de defender um doutorado em História Medieval bizantina e tinha muito interesse em orientar um estudo nessa perspectiva historiográfica. Eu tinha, na graduação, interesse, acesso a fontes, documentos e um orientador dedicado ao tema. É uma conjunção de fatores que possibilitaram o meu ingresso no trabalho como historiador e especializado em História Medieval.


Como é a pesquisa em história medieval no Brasil? A gente imagina que haja alguns dificultadores, como o acesso às fontes, por exemplo. Gostaríamos que você falasse como é o campo de pesquisa nessa área aqui no Brasil hoje em dia.


O campo de estudos mudou muito nas últimas duas décadas. Até os anos 1990, o historiador que se dedicasse à pesquisa em História Medieval, mesmo ligado a um programa de pós-graduação no Brasil, tinha que acessar documentos em arquivos e bibliotecas estrangeiras. Na virada dos anos 2000 para cá o cenário é completamente novo. E também é uma conjunção de fatores que levou a essa nova realidade dos estudos medievais no Brasil. Primeiro, o crescente e, até hoje, constante processo de digitalização, edição e tradução de documentos medievais de toda natureza. Pilhas e mais pilhas de documentos medievais, das mais diversas origens, passam por um processo de digitalização, o que permite que alguns dos mais importantes arquivos da Europa hoje tenham seu acervo disponibilizado online e, em muitos casos (mas não sempre), gratuitamente. Um bom exemplo é o MGH – Monumenta Germaniae Historica, sediado na Alemanha. Outra questão é a edição de documentos. Muitos deles estão transcritos e publicados, o que os torna acessíveis inclusive para pesquisadores que não lidam com paleografia. Boa parte destes documentos estão disponíveis também em plataformas digitais, mas também há acervos consideráveis publicados em formato de livros. Além do acesso aos documentos, o acesso a uma bibliografia atualizada e diversificada também está a um “click” do pesquisador. Os principais periódicos de História, brasileiros ou estrangeiros, são acessíveis por plataformas online de maneira gratuita. Isso permite ao pesquisador o contato com artigos de alta qualidade no momento de sua publicação, sem precisar importar material ou ter que viajar à Europa para pesquisá-lo. Na segunda metade do século XX, as principais publicações de historiadores estrangeiros que chegavam às bibliotecas de universidades brasileiras levavam alguns anos entre a primeira edição na Europa e a tradução para a língua portuguesa. Não era raro professores no Brasil trabalharem nos cursos de graduação com publicações que já estavam sendo revisadas fora do país. Atualmente, o historiador consegue acessar as principais publicações e autores dentro e fora do Brasil de maneira online, tendo contato direto com os debates mais atuais sobre qualquer temática referente à Idade Média, ou a qualquer outro período da História pelo qual se interesse. Soma-se ao acesso facilitado às fontes e às bibliografias um fator político: desde o início dos anos 2000 que o processo de expansão do ensino superior iniciado pelo governo Lula, através do Reuni, fez com que muitos cursos de História fossem criados e outros tantos reestruturados nessas últimas duas décadas. Isso criou uma nova demanda de professores de História em todo o Brasil e, consequentemente, de medievalistas. Essa expansão do ensino superior resultou numa descentralização da presença de professores e pesquisadores dedicados aos estudos medievais em regiões geograficamente distantes dos tradicionais centros de pesquisa consolidados até então. Por fim, a rapidez no contato entre as pessoas num mundo cada vez mais globalizado, e com distâncias cada vez mais encurtadas pelas tecnologias, também possibilitou o diálogo cada vez mais próximo e profícuo de historiadores brasileiros com importantes centros de pesquisa e medievalistas estrangeiros. Essa aproximação tem resultado em pesquisas conjuntas, publicações conjuntas, trabalhos de pós-graduação com dupla titulação (uma no Brasil e uma fora), acordos bilaterais entre universidades brasileiras e estrangeiras que favorecem a aproximação entre os laboratórios de estudos medievais dessas instituições, trocas de materiais digitalizados entre diferentes pesquisadores, entre tantas outras possibilidades de trabalhos em conjunto. Enfim, todos esses fatores, em conjunto, alteraram significativamente a produção de historiadores brasileiros sobre o período medieval nos últimos anos. Além de um número maior de medievalistas, situados nas mais diversas instituições pelo território brasileiro, as temáticas também variaram muito, saindo dos tradicionais espaços de pesquisa franco-germânico ou ibérico para uma diversificação na qual é possível encontrar hoje medievalistas brasileiros especializados nos estudos anglo-saxões, escandinavos, bizantinos, entre outros. Além disso, os estudos sobre Idade Média no Brasil hoje são diversificados também no recorte cronológico, encontrando ótimas pesquisas que lidam desde a Alta Idade Média, ou Antiguidade Tardia, até a Baixa Idade Média.


Você tem se dedicado a pesquisas sobre historiografia medieval, certo? Existiram escritores que viveram durante a Idade Média e produziram relatos históricos. E hoje há um campo de pesquisa sobre a produção desses escritores. Quem eram eles? Podemos falar que eram historiadores medievais? Eram cronistas? Era uma modalidade diferente de narrativa histórica? Pesquisar a obra desses escritores é como fazer uma história da história? Fale um pouco sobre o que esse tipo de pesquisa tem revelado.


A produção de narrativas sobre História nos remete a autores da Idade Antiga, como Heródoto, no século V a.C. Durante o período medieval, muitas narrativas de história foram produzidas. É claro que a premissa do que era um texto de História para a Idade Média é diferente daquela que produzimos e lemos hoje. Naquele período, a produção de História remetia a uma narrativa que pretendia lidar com a verdade, fundamentada basicamente no testemunho direto do autor ou daqueles que ele consultava. Muitas dessas narrativas tinham como ponto de partia acontecimentos do mundo religioso cristão. Esses historiadores iniciavam suas descrições em tempos bíblicos, como a Criação do Mundo ou a Encarnação de Cristo. Outros partiam da formação de um reino ou de um império. De uma forma ou de outra, a narrativa passava brevemente por diversos acontecimentos até alcançarem o tempo presente do autor, no qual se encontrava o objeto central de seus textos. Este podia ser uma guerra, a construção ou destruição de um reino ou a biografia de um governante. De toda forma, o essencial era construir um relato sobre o tempo ou acontecimento testemunhado pelo historiador, localizado numa grande narrativa que recuava a tempos passados, justificando os acontecimentos do tempo presente de quem escrevia. O público alvo podia ser seus contemporâneos, mas não raro esses textos eram destinados a gerações futuras, no sentido que Cícero dava à História, como magistra vitae (mestra da vida). Portanto, um tipo de História muito diferente daquele feito pelos historiadores no século XXI. Os historiadores da Idade Média eram membros de uma elite, pois não apenas eram alfabetizados como também tinham acesso aos mais importantes trabalhos de História, Filosofia ou outras áreas do conhecimento. Muitas vezes eram obras encomendadas por governantes, sacerdotes ou homens da nobreza medieval, visando a criação e divulgação de uma memória gloriosa sobre um período específico, para servir de exemplo às gerações futuras. Essas narrativas tinham características bem específicas, que as diferenciavam de outros tipos de textos narrativos da Idade Média, como as crônicas ou os panegíricos. Nas pesquisas históricas atuais, chamamos esse estudo da história de narrativas históricas de “Historiografia”. As possibilidades de pesquisa nesse campo são amplas e, atualmente, muito difundidas. Em meu trabalho de doutorado, por exemplo, estudei um historiador bizantino do século VI, Procópio de Cesareia, que escreveu sobre o governo de Justiniano no século VI. Atualmente, tenho visitado outros historiadores, como Jordanes e mesmo escritos de uma historiadora, Ana Comnena, do século XII. Esses textos têm revelado as relações dos governos para legitimar seus espaços de poder, as disputas políticas pelo exercício do direito e da autoridade, a fluidez das construções de identidade das populações do período ou mesmo a própria concepção de História em diferentes temporalidades no medievo. O estudo da história da escrita da História certamente é um campo onde ainda há muito a ser explorado.


Em geral, quando falamos em Idade Média, pensamos nos castelos europeus, nos camponeses europeus, em paisagens europeias etc. Idade Média é um período histórico que se refere somente à Europa?


Não exatamente. A Europa é um dos espaços estudados, certamente aquele que concentra o maior número de pesquisadores. Entretanto, não é possível pensar a Europa nem como um espaço homogêneo, nem como um continente isolado. Quando falamos em Europa medieval é comum vir à mente imagens que remetem a castelos, cavaleiros e camponeses. E isso tem uma explicação. Por muitas décadas, a historiografia brasileira foi muito influenciada pelo trabalho de historiadores franceses, diretamente vinculados à conhecida Escola dos Annales. No caso dos estudos medievais, nomes como Marc Bloch e Jacques Le Goff eram, e ainda são, presenças constantes nas ementas de cursos de História Medieval das universidades brasileiras. Por isso, a imagem clássica de Idade Média era basicamente devedora de uma construção francesa, de um medievo centralizado no mundo franco-germânico de tradição latina. Daí temas constantes sobre o medievo como Cavalaria, Feudalismo, Império Carolíngio ou Cruzadas. Não que esses temas não possam estar presentes em outros espaços da Europa medieval. Entretanto, nesse mesmo período, haviam culturas e formas de organizações políticas, sociais, econômicas, religiosas e militares muito diversas presentes no continente europeu. Como exemplos, podemos citar os vikings, os anglo-saxões, o mundo grego de tradição helênica, os magiares ou mesmo os árabes que, embora originários da Ásia, ocuparam a Península Ibérica por quase todo o período conhecido por Idade Média. Além disso, é importante destacar que essas populações não viviam isoladamente. Ao contrário, encontramos esses distintos grupos mantendo todo tipo de relações uns com os outros, desde relações comerciais e diplomáticas até aquelas de natureza bélica. Os estudos mais recentes sobre a História Medieval têm buscado mapear e compreender as possíveis relações entre essas distintas populações, dentro de novas metodologias, como História Global ou a História Conectada. As longas ligas comerciais, a expansão do cristianismo latino, o movimento das Cruzadas são apenas alguns dos exemplos de possíveis análises sobre essa diversidade de populações no mundo europeu medieval e a também diversa forma de contato que mantinham umas com as outras.


E fora da Europa? Quer dizer, no caso de grupos humanos que não tiveram contato com os europeus antes da era moderna. Os maias, por exemplo, se encaixam numa temporalidade medieval? E os diversos grupos indígenas da América do Sul que se organizaram em sociedades durante o período que denominamos Idade Média? Existe uma África subsaariana medieval? Existe uma história medieval da China para além de suas relações com os europeus?


O conceito de Idade Média nasceu na Itália Renascentista e foi consagrado por nomes como Petrarca, que no século XIV falava em tenebrae (referindo-se a uma ‘idade das trevas’), e Giorgio Vasari, que no século XVI falava do período anterior ao seu como media tempora ou media aetas. Essas expressões serviriam para caracterizar os mil anos que separavam as duas eras por eles consideradas as mais elevadas da cultura humana: a Antiguidade Clássica e o Renascimento. Entre esses dois ápices de desenvolvimento cultural, teria havido um grande hiato, chamado de “Idade Média”. É interessante percebermos que o termo foi criado por europeus para se referir a grandes e longas transformações culturais que tiveram a Europa como cenário. Assim, vemos que a construção dos conceitos de Antiguidade Clássica, Idade Média e Renascimento se deu e se direcionou à caracterização de manifestações culturais (artísticas, políticas, religiosas, científicas) tipicamente europeias. É curioso que uma expressão que surgiu com uma roupagem totalmente preconceituosa, que servia para diminuir a importância cultural dos dez séculos anteriores aos renascentistas, tenha permanecido ainda hoje nos estudos historiográficos. Acho perigoso caracterizar como “medieval” sociedades não europeias, ou sem contato próximo com os europeus dos séculos V a XV (para ficar num recorte cronológico amplamente aceito pela historiografia). Evidentemente que outras tantas sociedades fora da Europa também existiram ao longo do período chamado de Idade Média, fosse nas Américas, na África, na Ásia ou na Oceania. Entretanto, aplicar a esses espaços uma classificação de “medieval” seria olhar para comunidades distintas a partir de um prisma eurocêntrico. Em outras palavras, é como se todos os grupos humanos de qualquer parte do planeta tivessem que passar pelo chamado período medieval, como a Europa passou, para poderem viver um renascimento cultural e artístico, ou uma revolução industrial, ou ainda a formação de estados modernos. O resultado seria, certamente, uma caracterização desses diversos espaços, não em suas singularidades e especificidades, mas dentro de uma linha evolutiva e classificatória na qual a História já não se baseia há mais de um século. Além do mais, classificá-las como “medievais” as colocaria numa espécie de comparação perigosa e igualmente preconceituosa com a Europa ou, mais precisamente, com parte da Europa, entendendo o continente europeu em suas diversidades internas. Penso que os maias ou os incas, por exemplo, ou os diversos grupos indígenas sul-americanos, devem ser estudados em sua temporalidade específica (embora classificá-los como pré-colombiano ou pré-cabralino seja tão eurocêntrico quanto medieval). O mesmo se aplicaria às comunidades asiáticas, como no caso da China ou Índia, ou ainda às africanas. A contemporaneidade de sociedades, personagens ou acontecimentos ao redor do mundo não nos autoriza a classificá-los a partir dos mesmos pressupostos teóricos ou historiográficos. Isso seria reforçar os estereótipos sobre a Idade Média e, pior, lançar sobre populações totalmente distintas um olhar apenas superficial. Por exemplo, é simplista explicar que o Brasil é um país de maioria cristã porque trazemos as raízes medievais do cristianismo da realeza portuguesa. Ou que a divisão do território colonial em Companhias Hereditárias pudesse ser comparada às estruturas feudais europeias. Diferente disso, acredito que é fundamental ao estudante conhecer a complexidade dos processos de catequização ou ainda as especificidades da organização das instituições colonizadoras dentro de uma realidade própria e de problemas e objetivos típicos de uma história que não é nem europeia e nem medieval. A transposição do conceito de “medieval” a sociedades não europeias, especialmente aquelas que pouco ou nenhum contato tiveram com os europeus da Idade Média, dissolve e faz desaparecer o que o estudo das sociedades de temporalidades mais recuadas tem de mais rico e apaixonante: a diversidade.


E essa diversidade também é apaixonante no período medieval! Qual a relevância de se aprender sobre Idade Média nas escolas brasileiras hoje em dia?


Num mundo totalmente globalizado e conectado com tudo e com todos, é fundamental ter o conhecimento sobre o outro. O estudo da Idade Média é, antes de tudo, um estudo de alteridade. Parece paradoxal que, num período como o nosso, de contato extremo com a diversidade e acesso quase irrestrito à informação, seja tão comum encontrarmos exemplos de intolerância das mais diversas motivações e uma falta de conhecimento e respeito pela diversidade. Estudar História e, mais especificamente, História Medieval, é conhecer personagens e populações de uma temporalidade recuada, não em seu exotismo ou num cenário fantástico. É compreender que sociedades diferentes encontram soluções diferentes, com distintos resultados, para problemas semelhantes aos nossos. Problemas de natureza política, religiosa, econômica, artística... Não penso que o estudo da Idade Média deva ser encarado como uma História magistra vitae, exemplo de um passado que serviria ao presente, como propunha Cícero. Nem como uma linha evolutiva em constante desenvolvimento, que pretende demonstrar que hoje é melhor que ontem e que amanhã será melhor que hoje. Pensar a História Medieval por este prisma é reforçar uma visão superficial do passado, que nos levaria a imaginar que há sociedades e pessoas mais evoluídas que outras. O estudo da Idade Média, atualmente, serve principalmente para demonstrar a diversidade no tempo e no espaço, romper paradigmas sociais, políticos e religiosos sobre o passado, permitindo ao estudante uma reflexão que mostre a ele que o mundo é muito maior e mais diverso que a Europa dos castelos e cavaleiros. Além disso, a História Medieval deve levar o estudante a perceber que essa Europa medieval tinha também bispos, padres de paróquia, camponeses, comerciantes, historiadores, filósofos, artesãos, burocratas, literatos, mendigos... Estudar Idade Média num Brasil totalmente inserido no contexto da globalização cultural é apresentar ao estudante que o outro também tem uma história, tem preceitos, tem costumes, tem cultura, e que precisa ser conhecido, compreendido e respeitado. Além disso, é importante frisar que estes elementos não se resumem apenas a cavaleiros, princesas e castelos.


Uma pesquisa recente revelou que jovens brasileiros conhecem mais sobre Idade Média do que sobre a períodos recentes da história do Brasil, como a ditadura civil-militar, por exemplo. Quer dizer, aquela visão do período medieval como “idade das trevas” está menos presente nas salas de aula e os estudantes estão reproduzindo menos alguns estereótipos sobre essa época. Os jovens têm mais interesse pelo período medieval ou os professores ensinam mais sobre isso? De fato, estamos rompendo com uma visão estereotipada da Idade Média?


Discordo veementemente dos dados apresentados por essa pesquisa. Conheço o trabalho e afirmo que ele se baseia num formulário superficial, mal formulado e que propõe aos estudantes alternativas que, sem exceção, apresentam imagens estereotipadas da Idade Média, muito distantes do que os historiadores vêm pesquisando sobre o período há mais de meio século. Não apenas o conhecimento dos jovens brasileiros está distante do que as pesquisas sobre História Medieval apresentam hoje, como o conhecimento dos responsáveis por essa pesquisa se mostra claramente insuficiente para construir uma afirmação dessa importância. Foi a partir de estudos como este que a BNCC (Base Nacional Curricular Comum) pretendia, em 2015, excluir sumariamente os conteúdos de História Medieval e Antiga das propostas de ensino de História. Felizmente, isso não foi concretizado. Pesquisas posteriores a esta, portanto, ainda mais recentes, contrapuseram essa concepção. Por mais que os historiadores estejam empenhados, há décadas, em trabalhar a Idade Média por uma perspectiva que questione e reavalie estereótipos como o da “idade das trevas”, esses trabalhos alcançam um espaço muito restrito no ensino regular. Soma-se a isto o fato de a carga horária de aulas de História ter sofrido uma redução no ensino regular nos últimos anos. Consequentemente, o tempo dedicado ao ensino da História Medieval também diminuiu. Em contraposição, neste mesmo recorte cronológico, percebemos que a temática medieval vem ganhando espaços cada vez maiores nas mais diversas mídias, como games, séries, filmes, entre outros. Entretanto, é importante marcar que essas diferentes formas de representação do medievo não tem o compromisso de transmitir conhecimento histórico, mesmo tendo a Idade Média como um pretenso cenário ou pano de fundo. Nesse sentido, o que é crescente é o interesse dos jovens estudantes nestas representações midiáticas de entretenimento ambientado numa imagem cultural do que seria a Idade Média, não necessariamente com o estudo da Idade Média enquanto ciência histórica. Ou seja, ao mesmo tempo que o ensino de História Medieval perde espaço nos livros didáticos e no ensino regular, ele se mostra crescente numa cultura pop atrativa e muito consumida pelos jovens. Isso não nos permite falar num crescimento pelo interesse sobre o medievo, muito menos que os professores têm ensinado mais sobre a Idade Média. E, consequentemente, isso não aponta para uma ruptura, a curto prazo, dos paradigmas preconceituosos sobre o período. Para exemplificar, há uma pesquisa de 2018, da professora Cláudia Bovo, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) sobre o tema. Apesar de cerca de metade dos alunos pesquisados por ela no Ensino Fundamental e Ensino Médio dizer ter interesse pela Idade Média, menos de 0,5% deles demonstraram conhecimento sobre os recortes cronológicos do período e um percentual ainda menor indicou ter interesse em estudar o período. Dito isso, concluo que romper com uma visão estereotipada da Idade Média é um caminho árduo e um objetivo ainda distante. Prova disso são os constantes e inadequados usos de conceitos medievais para classificação ou caracterização de acontecimentos políticos e sociais da atualidade, o que demonstra, vez por outra, não apenas um desconhecimento sobre a Idade Média, como também do próprio período cívico-militar do Brasil. Uma forma de tentar lidar com esse problema é buscar aproximar o conhecimento sobre História Medieval, por vias alternativas aos livros didáticos (como este canal), de um público cada vez maior e mais variado de estudantes e de professores.

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