O historiador José D’assunção Barros, em seu livro O tempo dos historiadores, se perguntou como identificar à História a sua especificidade mais irredutível. Ou seja, como identificar aquilo que faz dela um campo de saber que não pode ser confundido com nenhum outro. Sua resposta foi tão impreterível quanto a poética do mineiro Carlos Drummond de Andrade. Em seu poema “O Historiador” o poeta mineiro retrata o ofício do historiador da seguinte forma: “Veio para ressuscitar o tempo [...] Veio para contar/ o que não faz jus a ser glorificado...” (DRUMMOND, 2007, p. 1197). Logo, tanto para Barros como para Drummond, a questão é que, no caso da História, a perspectiva do tempo é visceral. Sem ela, os historiadores não existem – ou, não existiriam. (BARROS, 2013, 13).
Para Barros (2013, p. 13), a consciência do tempo entre os historiadores variou consideravelmente ao longo da história da historiografia. Nesse sentido, a própria noção de tempo se “relativizou” entre as diversas sociedades ao longo da história, mas, de uma forma ou de outra, a consciência do tempo acompanha os historiadores desde os seus primórdios até os métodos científicos do período moderno. Todavia, deixaremos essa conversa para o próximo capítulo, lá nos verticalizaremos melhor na noção de tempo histórico e regimes de historicidade. Vamos, nesse momento, nos permitir algumas digressões fundamentais e esclarecer alguns conceitos relacionados ao tempo.
Dito isso, esclarecemos que, faremos esse mergulho inicial por meio dos dois primeiros capítulos do livro de José D’assunção Barros, intitulado por O tempo dos historiadores (2013), além de, assim que necessário, ampararmos em outros nomes ligados ao campo da historiografia.
Os vários tempos na definição de História
O tempo e o historiador
Situar todas as coisas no tempo é típico da História – isso é algo indissociável do trabalho do historiador e de sua vivência. Não somente situá-las, também, visualizá-las sob a perspectiva de que cada uma delas interage e ajuda a constituir um contexto, unindo-se a uma vasta rede de outras coisas que se inscrevem no tempo (BARROS, 2013, p. 17). Diante disso, as datas são fundamentais para nos situarmos no tempo, porém, não constituem o papel mais importante para o historiador,
O que é visceral mesmo, em cada historiador, é a ideia de que tudo se inscreve no tempo, de que tudo se transforma – e de que devemos refletir de modo problematizado sobre cada uma destas transformações, deixando que incida sobre elas uma análise que será a nossa e que, de resto, também se inscreve no tempo (BARROS, 2013, p. 17-18).
Além de o tocante problematizador das transformações ao longo do tempo, o historiador reserva outra particularidade (no que diz respeito ao tempo) em seu estudo. Para Barros, “quando se diz que ‘a história é o estudo dos homens no tempo’, rompe-se com a ideia de que a História de examinar apenas e necessariamente o passado” (2013, p. 18). O historiador pode, inclusive, trabalhar o momento presente:
a História do Tempo Presente é aquela que corresponde ao tempo de vida do próprio historiador, isto é, ela ocorre quando o historiador escreve sobre um período que a sua memória viva alcança (NETO & RAMOS, 2014, p. 18).
Portanto, o tempo passado-presente e suas transformações – ou, permanências – são coisas viscerais entre os historiadores. Enfim, por que não acrescentar que, estão os historiadores e historiadoras presas ao tempo, literalmente.
Tempo natural e tempo histórico
Barros afirma que, o tempo histórico é necessariamente o tempo humano. Ou seja, o que de fato interessa a um(a) historiador(a) é a passagem dos homens e mulheres sobre a Terra (2013, p. 20). Nesse sentido, o historiador ambiental José Augusto Drummond afirma, “o tempo no qual se movem as sociedades humanas é uma construção cultural consciente” (1991, p. 178). Esse tempo, por sua vez, não é o tempo dos físicos, dos astrônomos, dos geólogos e geógrafos. Tampouco se restringe ao tempo dos calendários ou da mera cronologia. (BARROS, 2013, p. 20).
Mas, isso não quer dizer que esses estudiosos naturais não tenham um pensamento histórico ou uma concepção de tempo – eles observam os fenômenos celestes, materiais ou geológicos dentro de uma escala temporal que vai além da humana –, podem inferir por exemplo, em uma história dos movimentos tectônicos. Para os historiadores,
o terremoto, contudo, pode vir a interessar aos historiadores quando ele interage com as sociedades humanas. Neste momento, ele deixará de ser simplesmente um fenômeno físico mensurável com a escala de Richter para se transformar em um acontecimento de outra ordem (BARROS, 2013, p. 21)¹.
Decididamente, o tempo de um historiador não é o tempo dos cientistas naturais, entretanto, caso algum fenômeno natural afete a vida humana – ou, os humanos interfiram na natureza – isso ocasionalmente entra para a história dos historiadores. Para fim de conversa, sempre será uma obrigação do historiador inserir o indivíduo em um tempo maior, que não é apenas seu, mas também das comunidades em que ele vive, da sociedade em que ele se inscreve, da política e das práticas culturais (BARROS, 2013, p. 22).
A (re)organização do tempo em diferentes formas
Para os historiadores e historiadoras: “o tempo ora se alonga, ora se contrai” (Barros, 2013, p. 23), de acordo com as sensibilidades humanas de uma determinada época:
Cinquenta e dois meses de guerra entre 1914 e 1918 mantêm certa analogia com as semanas passadas entre a vida e a morte em um hospital. O tempo da guerra é muito longo... Por sua vez, o da Revolução ou o do Maio de 1968 passam bastante rapidamente. O historiador faz a contagem, às vezes, em número de dias, até mesmo de horas; e outras vezes, em meses, anos ou períodos mais longos (BARROS, 2013 apud PROST, 2008, p. 96-97).
Um claro exemplo para diferenciar tempo cronológico (contado de cem em cem anos) do tempo da História (que, não precisam fazer nenhuma concessão aos limites dos séculos cronológicos), são os livros: Era dos extremos (1994) – considerando “um breve século XX” – e Uma longa idade média (2008), respectivamente de Eric Hobsbawn e Jacques Le Goff (BARROS, 2013, p. 26).
Delimitar um grande período historiográfico no tempo, separando-o de outro que se estende atrás dele e de outro que começa depois, é uma operação que traz marcas ideológicas e culturais que nos falam da sociedade na qual está mergulhado o historiador, dos seus intertextuais, de visões de mundo que de resto vão muito além do próprio historiador que está estabelecendo seus recortes para a compreensão da História (BARROS, 2013, p. 28).
Nesse contexto, e, a fim de contribuir para a discussão da organização do tempo pelos historiadores, outro aspecto intrínseco entre eles são os sistemas de datação. Segundo Barros, ainda que os calendários tomem por referência os fenômenos físicos, existem inúmeras maneiras de se dividir o tempo: calendário solar, calendário lunar etc. Dito isso, as datas são apenas um instrumento a mais para a elaboração do tempo histórico, e para, a partir desse tempo, pensar problemas históricos específicos (BARROS, 2013, p. 25).
Tempo narrativo: o poder de controlar o tempo
A partir dos tópicos levantados, podemos inferir que o historiador lida com um “tempo humano” transcorrido (ou em curso) – esse tempo será estudado por meio de fontes históricas; com base nas fontes o pesquisador gradualmente se flexionará em diferentes objetos de estudo; e, ao fim de tudo, precisará apresentar o resultado de suas pesquisas através de um tempo narrativo.
Dito isso, os homens e mulheres que seguem o ofício da História, além de possíveis professores e pesquisadores são potenciais senhores do tempo – verdadeiros deuses capazes de escalpelar os mortos, e, apresentá-los aos vivos. Como salienta Barros, o historiador,
pode-se acelerar o tempo, retardá-lo, suspendê-lo. O historiador que produz a sua narrativa adquire poderes e direitos e direitos, com relação ao tempo, que não possui na vida comum, quando precisa se resignar às leis temporais da vida cotidiana (BARROS, 2013, p. 29).
Diante disso, podemos pontuar a liberdade em que o historiador possui de ir e vir de um ponto a outro, de trás para a frente, da frente para a trás – podendo ainda, relacionar comparativamente dois momentos da narrativa. Portanto, para José D’assunção Barros, o historiador precisará adquirir as habilidades de um bom escritor.
O tempo, alguns conceitos
Propor definições de tempo é adentrar um desafiador e rico debate que tem envolvido filósofos, cientistas, antropólogos, historiadores e pensadores os mais diversos. Da possibilidade de se pensar um ‘tempo absoluto’ às concepções revolucionárias propostas pela Teoria da Relatividade de Einstein[...] (BARROS, 2013, p. 30).
Como pode ser lido, Barros destaca uma enorme dificuldade em definir o tempo, que segundo ele é uma frustação bastante antiga. A exemplo de Santo Agostinho (354- 430), nas suas Confissões, o filósofo se contorce intelectualmente diante desse desafio de definir o tempo, evocando-o inicialmente como “aquilo que se sabe, mas não se consegue definir” (BARROS, 2013, p. 31). Séculos, anos, meses e dias se passaram e a definição de tempo ainda é uma lacuna sem forma. Porém, segundo Barros (2013, p. 31), vários filósofos recentemente reconheceram que é mais fácil nos aproximarmos do conceito de tempo através de algumas noções, tal como: temporalidade, duração, processo, evento, continuidade, ruptura. Vide a figura abaixo:
Fonte: José D’assunção Barros
A partir dessas noções destacadas no quadro, adentremos introdutoriamente em algum desses regimes que identificam o tempo, do ponto de vista de suas relações com a História.
Temporalidade
“Temporalidade”, para Barros, é o primeiro conceito importante para a reflexão historiográfica no que concerne às relações entre Tempo e História. Segundo ele, estabelecer temporalidades é hastear uma bandeira no tempo, tomar posse do devir aparentemente indiferenciado, percebê-lo simbolicamente – e, nesse caso, operacionalizá-lo. (BARROS, 2013, p. 32).
Para o autor em questão, as temporalidades definidas pelos historiadores não existem por si mesmas, e, nem os seus limites são dados sumariamente. Há divergências e entraves, por exemplo:
Onde termina, de acordo com a historiografia, a Antiguidade? E quando começa a Idade Média? Quando, mais precisamente, tem-se a passagem para a Modernidade? Vivemos nos dias de hoje, no seio de uma nova época que já deveria ser definida como uma nova temporalidade pelos historiadores futuros? (BARROS, 2013, p. 33).
Diante desse quadro o que se destaca no momento é a compreensão de que, mesmo no interior de uma única sociedade sujeita ao devir histórico, os modos de perceber a relação entre Passado, Presente e Futuro diversificam-se². Logo, o sucesso de um marco temporal (ou de certa temporalidade) é creditado àquele ou àquela que construa sua narrativa histórica. Ressalta-se, enfim, que o conceito de temporalidade determina hoje a forma da narrativa e dos processos históricos (MARQUES, 2008, p. 50).
Duração
Ao ver de Barros, outra noção importante com a qual os historiadores precisam lidar é a de “duração”. Esse conceito foi filosoficamente elaborado por Henri Bergson em 1987 e logo reapropriado pela historiografia moderna – a exemplo da obra de Fernand Braudel sobre O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Felipe II (1949). (BARROS, 2013, p. 34). Sem delongas, para José D’assunção Barros,
'duração’ refere-se ao ritmo, ao modo e à velocidade como se dá uma transformação no tempo, à durabilidade ou permanência de algo até que seja substituído por algo novo ou por um novo estado (2013, p. 34).
Acrescentando a essa conceituação, pode-se inferir que o conceito de duração remete a um tempo que é sentido ou percebido subjetivamente pelo ser humano, e não meramente um tempo cronométrico (tempo natural).
Diante dessas formulações, é possível separar o conceito de “duração” em duas vertentes: uma “longa duração” e uma “curta duração”. a) Uma longa duração corresponderia àquilo que muda muito lentamente ou cuja mutação pode ser percebida como muito lenta – a relação de degradação (ou outros fatores) de um rio por efeitos humanos, ao longo do tempo, por exemplo. b) Uma curta duração corresponderia ao ritmo rápido dos estados de ser que se transformam mais ou menos rapidamente, uma sensação de mudança incessante e continuada – rompimento da barragem em Mariana-MG, em 2015, por exemplo. (BARROS, 2013, p. 35-38).
Evento, processo, estrutura
Às noções e conceitos de “temporalidade” e “duração” pode-se acrescentar outras. Dentro da ideia de “devir histórico” – ou de um tempo que sugere à percepção humana um ininterrupto movimento – o “evento” (acontecimento) parece opor-se simultaneamente às ideias de “processo” e de “estrutura”. (BARROS, 2013, p. 38).
Nesse sentido, segundo Barros, há uma prática historiográfica relacionada ao evento, e outra relacionada à estrutura, porém, o historiador pode se valer concomitantemente das duas, já que o tempo histórico se apresenta ao historiador sob a forma de sequências de eventos, estruturas que se sucedem e processos que se desenvolvem (2013, p. 38). Tendo em vista isso, José D’assunção aponta que,
tal como assevera Koselleck em Futuro Passado, pode-se partir da diretriz de que o evento (ou uma sucessão de eventos) só pode ser narrado; e de que a estrutura só pode ser descrita (BARROS, 2013 apud KOSELLECK, 2006, p. 133).
Dentro dessa perspectiva, podemos constatar que o aparato conceitual desenvolvido por Koselleck foi incorporado pela historiografia como aquilo que de mais eficaz se produziu até hoje para operacionalizar uma visão historiográfica do tempo. Mais à frente, adentraremos melhor na análise do Evento e da Estrutura, a partir de Koselleck.
REFERÊNCIAS
BARROS, Jose D’assunção. “Introdução ao tempo histórico” (pp. 13-29) e “O tempo, conceitualmente” (pp. 30-44). In O tempo dos historiadores. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
NETO, Sydenham Lourenço. RAMOS, Vinícius da Silva. História do Tempo Presente, diálogos com a História Pública e com o ensino de História: uma experiência exploratória. Aedos, n°15, v.6, Jul./Dez. 2014. Disponível em: . Acesso em 09 mar. 2018. MARQUES, Juliana Bastos. O conceito de temporalidade e sua aplicação na historiografia antiga. revista de história 158 (1º semestre de 2008), 43-65.
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¹ O esforço em estudar as sociedades humanas ligadas aos fatos físicos e aos fatores ambientais, vem se solidificando entre os historiadores desde a década de 70 do século XX, através das linhas de pesquisas da História Ambiental.
² Ver, Futuro-passado (1979) de Reinhart Koselleck.
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