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A controversa carta atribuída à princesa Isabel

Atualizado: 7 de out. de 2020

No terceiro artigo da série “Narrativas monarquistas”, o PROJETO DETECTA investiga uma curiosa carta que teria sido escrita em 1889 por dona Isabel, a então princesa do Brasil. As cartas pessoais dos membros da família imperial têm oferecido um vasto material de pesquisa para historiadores e biógrafos, mas o documento em questão foge aos padrões observados.

As quatro páginas da suposta carta da princesa Isabel encontrada no acervo do Memorial Visconde de Mauá (Fotos: Nossa História/Editora Vera Cruz)

No último domingo, dia 28 de junho, o site Aventuras na História publicou uma matéria assinada pelo jornalista Fabio Previdelli, segundo a qual os bastidores da assinatura da Lei Áurea teriam sido revelados por “uma carta escrita pela própria princesa Isabel, em 11 de agosto de 1889, endereçada a Visconde de Santa Victoria”.


O autor da matéria destaca algumas passagens da carta, tomada como evidência de que a princesa “apenas não queria dar fim ao regime escravista, como também indenizar os escravos libertos e assentá-los, para que assim pudessem ser capazes de produzir seu próprio sustento”.

O curioso é que o jornalista parece ter sido pautado por um artigo de Laércio Fidelis Dias, diretor da Fundação Palmares, órgão do governo federal. Citado na matéria por Previdelli, o artigo fora publicado semanas antes no site da fundação (22 de maio) e apresentava a carta como "inédita". Contudo, essa carta já é de conhecimento público desde 2006, quando a extinta revista Nossa História publicou uma reportagem sobre o documento.


Na época, a carta foi apresentada como “algo capaz de reescrever um dos mais importantes capítulos da História do Brasil”, pois sugeria a existência de um ousado projeto abolicionista da Casa Imperial, que incluía reforma agrária e reparação monetária aos libertos, algo ignorado pela historiografia.


O documento também revelaria um “lado rebelde” de Isabel (destacado no título da reportagem da Nossa História), muito diferente da personalidade descrita pelos biógrafos. Além de mostrá-la como articuladora do projeto abolicionista, a carta denotava uma postura feminista da princesa, preocupada com a defesa do voto das mulheres, algo que só seria possível no Brasil mais de 40 anos depois.


Tudo isso deixou nosso agente especial MarcBot intrigado e a Projeto Detecta mais uma vez foi acionada para investigar um caso envolvendo a monarquia brasileira. Descobrimos que pairam muitas suspeitas sobre a carta da princesa Isabel e vamos tentar passar mais essa história a limpo, dando continuidade à série “Narrativas monarquistas” (veja os artigos anteriores: #01, #02).


Pesquisa


No 31º número da revista Nossa História, edição de maio de 2006, a historiadora Priscilla Leal publicou uma reportagem anunciando um documento inédito: uma carta encontrada no acervo do Memorial Visconde de Mauá, que teria sido escrita por Isabel ao Visconde de Santa Vitória.


Na carta, a princesa relatava ter sido informada por seu pai – o imperador Pedro II – de que o Visconde de Santa Vitória teria feito uma doação para indenizar os ex-escravos libertos em 13 de maio do ano anterior. Isabel menciona estar a par de que o doador pedira sigilo para não provocar a reação dos senhores de escravos: “Deus nos proteja se os escravocratas e os militares saibam deste nosso negócio pois seria o fim do atual governo e mesmo do Império e da casa de Bragança no Brasil”, registra a carta, onde a princesa ainda menciona que a doação representava dois terços da venda dos bens do tal visconde.

O destinatário da carta seria Manuel Afonso de Freitas Amorim, o Visconde de Santa Vitória, um rico banqueiro gaúcho muito próximo de Irineu Evangelista de Sousa, mais conhecido como Visconde de Mauá, em cujo acervo a tal carta foi encontrada.


O documento despertou muito interesse de historiadores, mas logo de cara suscitou algumas desconfianças. Fátima Argon, chefe do Arquivo Histórico do Museu Imperial de Petrópolis (AHMIP), onde estão todas as correspondências de Isabel, estranhou alguns aspectos da carta, mas garantiu a autenticidade do documento a partir de um exame grafológico, segundo a reportagem da revista Nossa História (nº 31).

Páginas da revista Nossa História, nº 31, de maio de 2016

Na mesma ocasião, a historiadora Keila Grinberg manifestou surpresa quanto à pretensão da princesa de distribuir terras aos ex-escravizados: “Sabemos que André Rebouças tinha um projeto de reforma agrária. Mas sinceramente eu desconhecia que a princesa falava abertamente sobre o assunto”.


A reportagem também citava a biografia feita por Roderick J. Barman, onde a princesa é descrita como uma mulher ajustada às expectativas de uma sociedade tradicional: “D. Isabel obedecia ao marido na administração de sua vida, tanto pública como privada”. Esse perfil contrasta com o trecho da carta em que se manifestava o desejo de “libertar as mulheres dos grilhões do cativeiro doméstico”.


O assunto não se deu por acabado na edição de maio da revista Nossa História. No mês seguinte, a publicação voltou ao tema numa nova reportagem de Priscilla Leal sob o título “A polêmica da carta” (Nossa História, nº 32), na qual procurou-se ouvir o parecer de historiadores sobre os “pontos obscuros” do documento. Um deles é o próprio Barman, citado na edição anterior. Ouvido pela reportagem, o brasilianista contestou a autenticidade da carta, insistindo numa Isabel “devotada catolicamente que se subordinava ao papel que a Igreja designava a uma mulher” e chamando atenção para algumas inconsistências na datação.

Apesar da polêmica em torno da carta, a nova reportagem da Nossa História se apoiava nas apreciações de Fátima Argon para reiterar a autenticidade do documento. Contudo, a chefe do AHMIP seria, anos depois, coautora de um livro que contesta veementemente a carta como documento histórico.


Em 2019, Fátima Argon e Bruno Cerqueira publicaram Alegrias e tristezas, um estudo da autobiografia de Isabel. Fundador de um instituto cultural dedicado à memória da princesa e do abolicionismo, Cerqueira escreveu a parte do livro em que se analisa a obra dos biógrafos de Isabel. A partir da página 424, o autor passa a tratar da polêmica carta ao visconde de Santa Vitória.


Segundo Cerqueira relata no livro, Barman teria enviado uma mensagem ao Museu Imperial declarando que a carta é falsa. O coautor de Alegrias e tristezas concorda com o brasilianista e apresenta vários indícios de fraude encontrados ao longo do documento, entre os quais estão a assinatura, os francesismos e outras expressões da carta que sugerem uma intimidade que não existia entre a princesa e o visconde.


O jornalista Paulo Rezzutti, que tem se dedicado a pesquisar a família imperial, comentou a carta em seu canal do youtube no dia 26 de fevereiro deste ano. No vídeo, Rezzutti reiterou os argumentos de Cerqueira para afirmar a falsidade da carta. Meses depois, o jornalista participou do História no Cast, episódio que foi ao ar no dia 13 de maio, quando reafirmou o mesmo posicionamento.


As fragilidades da carta parecem ter esvaziado as possibilidades de análise e seu potencial como documento histórico. Contudo, no debate político das redes sociais, a carta tem prosperado. Desde 2016, o documento tem sido reapropriado no discurso monarquista como um trunfo para “refutar” a historiografia sobre o fim da escravidão no Brasil e a derrocada da monarquia ou para revisar a memória social a respeito da relação entre Pedro II e os empreendimentos de Mauá.

As pesquisas acadêmicas vêm lançando luz sobre o protagonismo dos próprios escravizados e afro-brasileiros no processo de abolição, minimizando a imagem de "redentora" construído sobre Isabel pela narrativa oficial. No esforço de reabilitar o papel da princesa e do próprio Império como articuladores do fim da escravidão no Brasil, grupos monarquistas estão usando a tal carta como "prova".


Páginas no Facebook como Pedro II do Brasil, Por que Monarquia?, Vamos falar de História?, Círculo Monárquico de Barra Mansa-RJ, Defesa da Tradição, entre muitas outras, estão replicando trechos da carta sem contextualizarem todo o debate que existe em torno dela (veja prints de algumas postagens). Alguns sites também publicaram textos com base na carta, contribuindo para propagar um perfil da princesa que não se verifica em todas as outras correspondências de Isabel, conforme Barman, Cerqueira, Rezzutti e outros pesquisadores já notaram.

A profusão de compartilhamentos da carta pela web pode ter induzido o diretor da Fundação Palmares a tomá-la como um documento incontestavelmente autêntico. A falta de apuro o fez apresentar o documento como inédito quase quinze anos após a sua publicidade. Além disso, em dois momentos de seu artigo, o diretor da Fundação Palmares afirmou que a carta de Isabel foi endereçada ao Visconde de Mauá. Por sua vez, o site Aventuras na História pode ter sido induzido aos mesmos equívocos ao pautar-se por um artigo publicado no site oficial de um órgão federal.


O Projeto Detecta aproveita esta oportunidade para alertar o jornalismo profissional acerca das fontes de informação sobre História. Os veículos de comunicação dedicados à divulgação histórica fazem um trabalho fundamental e têm feito isso com cada vez mais qualidade. Contudo, em tempos de desinformação (muitas vezes praticada por órgãos oficiais), é preciso redobrar a atenção para não cair na tentação de “vender gato por lebre” a um público cada vez mais sedento por conhecer o passado.


A respeito do conteúdo da carta, o Projeto Detecta está investigando a atuação de Isabel no abolicionismo. Esperamos, ainda nesta série, abordar o apoio da princesa a quilombos, a relação com as lideranças antiescravistas, a questão da reforma agrária e outras narrativas envolvendo a herdeira do trono brasileiro. Esperamos trazer essas checagens nos próximos artigos.


Por ora, deixamos apenas alguns apontamentos feitos por Luiz Gustavo Santos Cota, historiador consultado pela nossa equipe. A respeito da suposta missiva de Isabel ao Visconde de Santa Vitória, Cota comenta: "Suposições à parte, não creio que, se verídica, a carta mude muita coisa, especialmente o processo crítico em torno das pesquisas sobre a abolição e os abolicionismos. Se comprovada, a carta pode, de um lado, indicar como a regente não conseguiu tomar ações que condiziam com convicções. De outro lado, pode reforçar a tese do Richard Graham de que a república não veio como reação à abolição, mas aos projetos para o pós-abolição, como o defendido por André Rebouças. Esse último ponto é o que eu achava interessante em pensar. Como esses projetos, que foram derrotados não apenas pela República, mas pela própria Lei Áurea, se apresentaram às elites política e econômica como uma ameaça”. Aguardemos os próximos artigos.


Conclusão: DEBATE ABERTO!


Com base nas investigações do Projeto Detecta, nosso agente especial MarcBot entende que a autenticidade da carta ainda está, diríamos, “sub judice”, já que Fátima Argon reconheceu a grafia como sendo da princesa Isabel, mas outros pesquisadores – destaque para Roderick Barman e Bruno Cerqueira – contestam sua autenticidade a partir de vários indícios. Uma crítica documental mais completa seria necessária para colocar um ponto final no debate. Nossa equipe, contudo, não tem conhecimento de nenhum trabalho nesse sentido. O fato é que a carta está imersa numa atmosfera de tanta desconfiança que inviabiliza seu uso como evidência de qualquer coisa que se queira afirmar sobre os planos da monarquia e da princesa a respeito de uma suposta indenização, da reforma agrária ou do voto feminino.


Pesquisa: Pablo Bráulio, Luiz Gustavo Santos Cota e Welber Santos.

Redação: Pablo Bráulio

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