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A família imperial não tinha escravos?

Atualizado: 7 de out. de 2020

O PROJETO DETECTA dá continuidade à série "Narrativas monarquistas" e investiga mais um conteúdo suspeito divulgado nas redes sociais. Consultando a bibliografia sobre o tema e com ajuda de pesquisadores da área, apuramos as relações entre escravidão e a família imperial brasileira durante o Segundo Reinado.

“A família imperial não tinha escravos. Todos os negros eram alforriados e assalariados, em todos os imóveis da família”, afirma a página Pedro II do Brasil em postagem publicada no Facebook em 22 de setembro de 2016 (veja print abaixo).


Como afirmamos no primeiro artigo da série “Narrativas monarquistas”, essa postagem (ou versões dela) tem circulado pela internet, sendo compartilhada por outros perfis nas redes sociais ou replicada em blogs e sites monarquistas. Por isso, o Projeto Detecta iniciou uma verificação para apurar o que é fato e o que é desinformação nessas mensagens.


Neste segundo artigo da série, trataremos da relação entre a Casa Imperial e a escravidão. O agente especial MarcBot reuniu nossa equipe para mais uma cuidadosa investigação; desta vez, com o objetivo de conferir se é verdade que a família reinante no Brasil não tinha escravos e se todos os negros e negras que trabalhavam para a Casa Imperial eram alforriados e assalariados.

Print de postagem da página Pedro II do Brasil no Facebook (22/09/2016)

Pesquisa


A escravidão negra é um dos temas mais explorados pela historiografia no Brasil. Isso tem uma explicação: entre os séculos XVI e XIX, territórios que hoje fazem parte do nosso país foram os que mais receberam pessoas escravizadas procedentes da África; além disso, o Brasil foi o último país ocidental a abolir a escravidão. Historiadores e sociólogos consideram a experiência da escravidão como um elemento estruturante da nossa sociedade.


Portanto, além de ser um tema clássico, a escravidão suscita sempre novos estudos. As pesquisas não param e nunca deixam de trazer contribuições reveladoras. Para este artigo, a equipe do Projeto Detecta buscou se apoiar na historiografia mais atualizada e priorizou os trabalhos de dois pesquisadores: Ilana Peliciari Rocha e Tâmis Peixoto Parron, cuja produção acadêmica tem muito a ver com o assunto desse artigo. A obra já consagrada de Lilia Moritz Schwarcz também foi fundamental para o trabalho da nossa equipe.


Antes de apresentar os resultados da pesquisa, precisamos ter em mente que não havia no Brasil uma distinção muito clara entre o que pertencia ao Estado e o que era propriedade da família imperial. Essa era uma situação bem comum nas monarquias absolutistas, onde os assuntos da administração pública se misturavam com os assuntos particulares do monarca e até de funcionários empregados nos serviços públicos.

É mais ou menos isso que Max Weber definia como patrimonialismo. Para alguns intérpretes, como Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda, o patrimonialismo (herança da colonização portuguesa) deixou marcas fortes na formação social do Brasil. A confusão entre público e privado costuma ser vista como uma chave para explicar a corrupção do Estado. Mas esse é um assunto controverso e vamos nos ater ao que importa para este artigo.


É verdade que o Império do Brasil era uma monarquia constitucional, não absolutista, mas a racionalidade pública que se atribui àqueles tempos encontrou alguns limitadores na formação do Estado brasileiro. Certamente, a persistência da escravidão e a forma como ela foi tratada pelo governo imperial constituíram um entrave à pretendida modernização política.


De fato, o imperador do Brasil e sua família não possuíam escravos particulares, mas tinham o usufruto dos chamados “escravos da nação” – homens e mulheres de origem africana que pertenciam ao Estado brasileiro, eram empregados em estabelecimentos públicos e podiam prestar serviços pessoais aos membros da corte.


Tomemos como exemplo a Fazenda Santa Cruz. Confiscada dos jesuítas pela Coroa portuguesa no período pombalino, tornou-se residência de verão da família real em 1817. Após a independência, os dois imperadores do Brasil – Pedro I e Pedro II – e seus parentes gozaram do clima e das comodidades da imperial fazenda, além dos serviços de quem trabalhava lá. O estabelecimento era especializado em criação de gado, mas penava com a má gestão nos tempos do Império.


“Administrada por um superintendente que se reportava ao mordomo da Casa Imperial, a fazenda não conseguia sair de um estado bem distanciado de suas potencialidades. O único setor que não parava de crescer era o da escravaria. Em 1834, contavam com 2065 escravos. Em 49, 2128. Em 55 chegou a ter 2235 escravos”, afirma Lilia Moritz Schwarcz sobre a Fazenda Santa Cruz. Segundo a historiadora, parte dos rendimentos do imóvel vinham das transações envolvendo os próprios cativos: “escravos de ganho eram alugados, em geral por prazos de três a seis meses, e os preços variavam conforme sua especialidade”.


As pesquisas de Schwarcz revelam que os escravizados de Santa Cruz eram bastante explorados e não viviam em boas condições durante o Segundo Reinado. Apesar disso, era um local conhecido pelo tratamento diferenciado dado aos escravizados se comparado com outros estabelecimentos públicos que usavam esse tipo de mão de obra.

A proximidade de dom Pedro II gerava ali benesses de cunho patrimonialista que favoreciam os empregados na fazenda de verão da família imperial. A historiadora Ilana Rocha relata uma fuga de escravizados de outro estabelecimento público – a Fábrica de Ferro de Ipanema – para a Fazenda Santa Cruz, “reflexo do paternalismo associado à postura liberal do imperador”.


Em geral, as queixas dos “escravos da nação” eram recorrentes, além de denúncias que circulavam nos jornais sobre maus tratos e exploração de trabalho nos estabelecimentos nacionais, apesar do discurso oficial, que minimizava esses episódios. Independente de quem tivesse mais com a razão, o fato é que o Estado imperial brasileiro foi um grande proprietário de pessoas escravizadas.


Até 1871, apesar das lacunas estatísticas, é possível dizer que o número de "escravos da nação" empregados em estabelecimentos governamentais girava na casa dos 3000. A maioria estava na Santa Cruz e outras fazendas – Arari e São Lourenço (Pará), São Bernardo (Maranhão), Piauí e Nazaré (Piauí); mas também havia pessoas escravizadas nas fábricas de Ipanema (São Paulo), Estrela (Rio de Janeiro) e Coxipó (Mato Grosso), na Estalagem Naval de Itapura (São Paulo), nos arsenais de Guerra e da Marinha, no Jardim Botânico e até na Quinta da Boa Vista (Rio de Janeiro), onde morava a família imperial.


A remuneração não era regra para os “escravos da nação”, embora ela pudesse acontecer em casos específicos, a depender do tipo de trabalho realizado, das jornadas regulamentadas ou do perfil de cada administrador. Nesses casos, nem sempre se recebia um salário. Na maior parte das vezes era um pagamento para o próprio sustento, como ocorria até mesmo com os africanos livres empregados nos estabelecimentos imperiais.


Sobre as relações de trabalho naquela época, consultamos o historiador David Patrício Lacerda. Nos tempos do Império, segundo ele, “escravizados e livres compartilhavam experiências comuns de exploração e o caráter juridicamente livre das relações de trabalho esteve longe de implicar a ausência de coerção econômica e extraeconômica sobre a mão de obra. Os mundos da escravidão e do trabalho dito livre se entrelaçavam naquele contexto muito além do que comumente se supõe”.


Africanos livres, "escravos da nação" e imigrantes alemães trabalharam na construção de Petrópolis, que seria a nova residência de campo da família imperial para os dias quentes de verão. Ao contrário dos africanos livres e alemães, os escravizados não entravam na contagem de "pessoal" pois pertenciam à Coroa. Os mais velhos recebiam gratificações semanais.


Os "escravos da nação" estavam enredados nas relações patrimonialistas vigentes. Em sua tese, Ilana Rocha mostra que era prática comum os funcionários de estabelecimentos públicos se servirem dos “escravos da nação” como seus criados domésticos, principalmente as mulheres e os menores.

A própria família imperial dispunha de dezenas de escravizados domésticos a seu serviço, concentrados no Palácio São Cristóvão, sua residência oficial. Lilia Schwarcz relata que escravizados da Fazenda Santa Cruz “eram deslocados em grande número para fornecer seus serviços nas quintas, paços e outras repartições da Casa Imperial. Os escravos só não podiam ser vendidos: o imperador detinha o poder de usufruto da escravaria, que fazia parte da propriedade. Podia, no entanto, alforriá-los”.


Os processos de alforria eram bastante burocráticos, esbarravam na decisão do administrador do estabelecimento onde o postulante à liberdade era empregado, nos critérios da respectiva tesouraria provincial e do Tesouro Nacional e em restrições impostas por leis e normas do Ministério da Fazenda. As alforrias podiam ocorrer por requerimento da própria pessoa escravizada ou por iniciativa do seu senhor; neste caso, o Estado imperial.


A escravidão pública seria abolida somente em 1871 pela chamada Lei do Ventre Livre; mesmo assim, os alforriados permaneciam sob inspeção do Estado em condição similar por mais cinco anos após a lei. A libertação dos "escravos da nação" se deu em grande parte como resposta ao movimento abolicionista, que desde os anos 1860 havia intensificado suas críticas ao fato de o Estado brasileiro possuir escravizados.


Antes de 1871, era comum haver alforrias cuja iniciativa era atribuída ao imperador, especialmente em dia de festas. Em 1864, por ocasião dos casamentos das princesas Isabel e Leopoldina, ocorreu a alforria de dezenas de escravizados. A maioria deles prestava serviços à família imperial ou havia realizado alguma função relacionada aos casamentos, o que reforça o caráter patrimonialista e paternalista dessas alforrias.

Pouco tempo depois, o Estado imperial libertou muitos cativos para lutarem na guerra contra o Paraguai. Dos 274 libertos da nação em 1866, mais da metade era da Fazenda Santa Cruz e “67 de S.M.I., retirados dos afazeres domésticos na Casa Imperial”.


A decisão repercutiu como uma grande generosidade do imperador, mas muitas pessoas na época não deixaram de notar uma contradição: escravizados públicos estavam sendo alforriados para assentar praça e suprir uma demanda do Exército; uma medida muito mais de cunho político-militar do que emancipacionista. Eram corpos liberados do cativeiro para morrer em batalha.


A historiografia tem demonstrado as ambiguidades do governo brasileiro em relação à abolição. "O Império procurava extinguir a escravidão, ainda que gradualmente, mas durante boa parte da existência de escravos da nação esta postura era superficial e o que foi feito foi insignificante. O debate político e a manifestação explícita do governo sobre a existência de escravos públicos como uma contradição em sua postura mais liberal e abolicionista só ocorreram nas duas últimas décadas que antecederam a abolição", afirma Ilana Rocha. Ainda segundo a historiadora, "já tinha ocorrido no Império, por parte do Imperador, uma grande quantidade de alforrias de escravos públicos, mais por sua conveniência, liberalidade ou generosidade do que por outra razão. Ou lhe faltavam condições para ir além ou lhe interessava ser generoso e paternalista".


Apesar das intenções liberais do imperador, os órgãos máximos do Estado brasileiro atuaram, durante boa parte do Segundo Reinado, em benefício das classes senhoriais, consistindo nisso a estabilidade institucional da escravidão, favorecida por alianças políticas e sociais que se costuraram sob o Império do Brasil. Mesmo com a proibição do tráfico negreiro, em 1831, essas alianças continuaram operando para garantir o contrabando de africanos escravizados, o que pode ser considerado como o primeiro grande crime do Estado brasileiro.


Conclusão: LOROTA!


Durante o Segundo Reinado, o Estado brasileiro possuía escravizados e a Casa Imperial usufruía dos serviços prestados pelos "escravos da nação". Ainda que estes não fossem propriedade particular da família imperial, as relações patrimonialistas vigentes não nos permitem distinguir com clareza o que era público e o que era privado no mundo palaciano. Nem todos os negros que trabalhavam nos imóveis da família imperial recebiam salários ou eram alforriados, conforme atesta a historiografia a partir da documentação disponível. Embora fosse prática comum o imperador conceder alforrias, a "escravidão pública" só seria abolida em 1871 após pressões do movimento emancipacionista. Desse modo, o agente especial MarcBot e nossa equipe só podem concluir que não procede a narrativa verificada pela Projeto Detecta neste artigo.


Pesquisa: Juliana Videira e Pablo Bráulio

Redação: Pablo Bráulio

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