top of page

O quilombo do Leblon era sustentado pela princesa Isabel?

Atualizado: 7 de out. de 2020

Retomando a série "Narrativas monarquistas", a equipe do PROJETO DETECTA investigou as relações da princesa Isabel com o movimento abolicionista e com o quilombo do Leblon.

No último artigo da série “Narrativas monarquistas”, abordamos uma polêmica carta atribuída à princesa Isabel. Essa carta revelaria que a princesa era amiga de líderes abolicionistas e articulava com empresários o futuro dos libertos pela Lei Áurea. O envolvimento de Isabel com a causa antiescravista nos leva a um assunto muito presente em postagens monarquistas que circulam pelas redes sociais: o quilombo do Leblon.


Vejamos o que diz a página Pedro II do Brasil no Facebook, em postagem do dia 22 de setembro de 2016: “O bairro mais caro do Rio de Janeiro, o Leblon, era um quilombo que cultivava camélias, flor símbolo da abolição, sendo sustentado pela Princesa Isabel” (print abaixo). Esse trecho aparece em várias postagens publicadas por outras páginas e perfis na internet, especialmente aqueles que se identificam ideologicamente com a monarquia. Algumas oferecem até mais detalhes sobre as relações de dona Isabel com o quilombo e com o abolicionismo.

Print de postagem da página Pedro II do Brasil com a foto do imperador e da imperatriz acompanhado de várias informações a respeito do Segundo Reinado (Facebook, 22/09/2016) - o conteúdo checado aqui neste artigo aparece com destaque em vermelho

A página Brazil Imperial, por exemplo, relata episódio em que, após certa confusão, um grupo de abolicionistas do Leblon teria sido acobertado pela princesa e ela ainda teria impedido a autoridade policial de destruir o quilombo. Já a página Círculo Monárquico Cabo Frio RJ destaca a relação entre o abolicionismo e as camélias, uma flor cultivada no referido quilombo. Ambas as páginas afirmam que Isabel utilizava a flor como adereço em suas aparições públicas, um gesto tipicamente abolicionista (prints abaixo).

Prints de postagens feitas no Facebook em 2020 pelas páginas Brazil Imperial (14 de abril) e Círculo Monárquico Cabo Frio (13 de maio)

Nosso agente especial MarcBot ficou bastante intrigado com essas narrativas e convocou a equipe do Projeto Detecta para investigar as relações da princesa Isabel com o abolicionismo e com o quilombo do Leblon. Acompanhe nossa investigação!


Pesquisa


Atualmente, o Leblon é um bairro muito famoso e tem o metro quadrado mais caro do Rio de Janeiro. É óbvio que nem sempre foi assim. No século XIX, quando as linhas de bonde começaram a chegar ao Leblon, essa era uma região afastada das áreas mais urbanizadas da cidade. Pouco antes do fim da escravidão, as chácaras ainda predominavam no bairro e uma delas - não o bairro inteiro - ficou conhecida por abrigar negros fugidos: era a Chácara das Camélias, que pertencia a um rico comerciante português chamado José de Seixas Magalhães.

Além de dedicar-se ao comércio e à fabricação de malas e objetos de viagem, Seixas investia em terras na zona sul do Rio. Ali, possuía uma chácara onde cultivava camélias com o auxílio de homens e mulheres que haviam fugido da escravidão. Bem relacionado, o português era amigo e cúmplice de líderes da Confederação Abolicionista, entidade que atuava na propaganda antiescravista, estimulava fugas em massa e organizava quilombos como o do Leblon.


Esse tipo de quilombo era muito diferente dos mocambos palmarinos, ou de qualquer quilombo que pudesse se enquadrar naquele “modelo tradicional” de resistência à escravidão em que tudo era muito secreto e escondido. Tratava-se de uma nova categoria à qual a historiografia consagrou o nome de “quilombo abolicionista”. Nos anos finais da escravidão, surgiram alguns desses quilombos vinculados ao movimento abolicionista tido por mais radical, que protegia os fugitivos em diferentes locais, incluindo casas e terrenos de pessoas influentes da sociedade imperial.


O quilombo do Leblon pode ser considerado como um ícone do movimento articulado pela Confederação Abolicionista e as flores cultivadas ali expressavam o projeto de libertação imediata de todas as pessoas escravizadas sem qualquer indenização aos escravocratas. Nas manifestações favoráveis a esse tipo de solução, as camélias eram itens indispensáveis. Orgulhosamente exibida em lapelas e vestidos, a flor identificava os apoiadores da causa abolicionista.

O historiador Eduardo Silva pesquisou o quilombo do senhor Seixas e escreveu um instigante livro chamado As camélias do Leblon (Companhia das Letras, 2003), onde procura descortinar as ligações entre o movimento político abolicionista e o movimento social negro. Esse livro é provavelmente a principal referência que inspirou a narrativa que estamos checando neste artigo.


Silva afirma que Seixas fornecia regularmente suas flores à residência de dona Isabel. “As camélias do Leblon enfeitavam não apenas a mesa de trabalho da princesa, como ainda sua capela particular”. Contudo, em nenhum momento do livro o historiador diz que o quilombo do Leblon era sustentado pela princesa, embora deixe claro o apoio de Isabel à abolição.


No auge da campanha abolicionista, passou a princesa a organizar, em Petrópolis, suas famosas 'batalhas de flores', nas quais eram arrecadados fundos com propósitos abolicionistas”, episódio a partir do qual – segundo Silva – a princesa teria se manifestado “abertamente abolicionista”, cercando-se de gente abolicionista e rompendo “com todas as conveniências políticas da neutralidade”.


Em mais de uma passagem de seu livro, o historiador revela o uso público de camélias pela princesa Isabel e afirma, no terceiro capítulo: “Na guerra simbólica que se instaura, uma ou outra vez, a própria princesa ousou aparecer em público com uma dessas flores do Leblon a lhe adornar o vestido”, algo que teria desagradado conservadores, liberais e até republicanos, mas que ampliaria o poder simbólico das camélias na vida política do país.


O proprietário da Chácara das Camélias seria protegido por Isabel e até mesmo pelo imperador. Como evidência disso, Silva recorre à obra de Pedro Calmon, que cita um relato do abolicionista Bricio Filho, segundo o qual Seixas teria acionado a princesa para impedir o chefe de polícia Coelho Bastos (conhecido pelos seus métodos repressivos altamente violentos contra negros fugitivos) de intervir no quilombo do Leblon. É a esse episódio que a página Brazil Imperial no Facebook se refere quando menciona um “grupo de abolicionistas” que teriam fugido para a casa de Isabel em busca de ajuda.


O livro de Eduardo Silva contém uma narrativa envolvente e fácil de compreender, além de ser uma importante contribuição à historiografia, pois lança luz sobre uma face pouco conhecida do abolicionismo. Mas não devemos tomar suas conclusões como definitivas. É o próprio autor que alerta para isso logo na introdução, deixando claro o caráter provisório e sugestivo dos resultados apresentados como parte de um projeto sobre história cultural da abolição, uma pesquisa mais ampla e que ainda estava em andamento na época da publicação do livro. Silva lança mão de cartas, relatos e outros documentos registrados pelos próprios abolicionistas e transcreve algumas de suas fontes no apêndice do livro, disponibilizando ao público um material que certamente contribui para entender o desmantelamento da escravidão no Brasil.


Mas uma questão importante não é suficientemente explorada no livro, uma questão na qual a historiografia da abolição tem insistido: qual o papel das pessoas escravizadas no combate à escravidão? Ao resenhar o livro de Silva, o historiador Robert Daibert Júnior se pergunta sobre qual seria o significado das camélias para os próprios escravizados.

Com base em estudos sobre a família escrava no Brasil, Daibert Júnior lembra que as flores não eram utilizadas como elementos de ornamentação nas sociedades africanas: o ato de cortar as flores era visto como algo predatório, uma vez que elas “são entendidas como portadoras de uma fase preliminar da fruta ou da árvore. Ou seja, flores colhidas representam uma espécie de aborto e são pouco valorizadas como símbolos”.


Na época da escravidão no Brasil, viajantes estrangeiros interpretaram a ausência de flores nas senzalas como falta de esperanças e recordações, mas tais olhares “eram marcados pelos parâmetros da sociedade francesa do século XIX, onde prevalecia um verdadeiro culto ao uso prático e simbólico das flores”. Outro historiador, Robert Slenes, em sua obra Na senzala, uma flor, já havia desconstruído essa visão etnocêntrica e revelado que o fogo, sempre presente nos lares escravos, cumpria um papel cultural muito mais relevante para a vida familiar dos africanos.


Embora não negue o protagonismo dos escravizados na luta contra a escravidão, o livro de Eduardo Silva se limita a dizer que eles, ao fugirem do cativeiro, usavam a camélia nas estações de trem para serem reconhecidos pelos abolicionistas que iam acobertá-los. A contribuição desses escravizados aparece no livro apenas em sua adesão por meio de fugas em massa orquestradas pelos abolicionistas, avalia Daibert Júnior.


Especialistas no assunto concordam com a ousadia e a contribuição da Confederação Abolicionista para o fim da escravidão, mas não há consenso de que ela fosse uma entidade tão radical como descrita no livro de Eduardo Silva. Parece haver muitos elementos para duvidar desse radicalismo. A preferência dos abolicionistas por camélias brancas, por exemplo, dado todo o simbolismo da flor, revelaria a “busca por uma solução pacífica, moderada em seus fins e conduzida de forma previdente”.

O ato da fuga certamente expressava um rompimento que abalava os alicerces do escravismo, entretanto, Daibert Júnior manifesta a impressão deixada pelo livro de Silva de que, após a atitude guerreira de rompimento, os escravizados que optavam pelos "quilombos abolicionistas" silenciavam-se como aprendizes de uma liberdade de certo modo tutelada pelas lideranças do abolicionismo, muitas delas homens brancos e oriundos das elites políticas e econômicas do Império.


Feitos os contrapontos, deve-se considerar que Eduardo Silva não ignora a complexidade e amplitude do abolicionismo, pois o quilombo do Leblon aparece no livro como parte de uma rede bem diversificada de grupos e iniciativas abolicionistas. Apesar de as páginas monarquistas nas mídias sociais reproduzirem trechos de seu livro em que se destaca o papel de Isabel no abolicionismo, Eduardo Silva não atribui à princesa uma posição tão central, embora enfatize seu envolvimento e contribuição nos embates políticos que favoreceram a articulação parlamentar para a assinatura da Lei Áurea.

O historiador menciona vários testemunhos da época que evidenciaram a simpatia de Isabel pela causa abolicionista, mas também não deixa de ouvir opiniões de quem criticou a regente, como Rui Barbosa, para quem a “guinada” abolicionista de Isabel não podia ser vista como simples generosidade. “Para ele a questão era política, tendo a princesa apenas cedido a uma situação de fato criada pelo movimento abolicionista. Juntos, abolicionistas e escravos – principalmente os escravos – forçaram a ‘evolução’ da princesa na direção da abolição imediata e incondicional. Para Rui Barbosa, a atitude firme dos escravos, as fugas em massa e a formação dos quilombos abolicionistas jogam papel verdadeiramente fundamental para a mudança de atitude da princesa”, relata Eduardo Silva.


Complementando o ponto de vista de Rui Barbosa, há de se levar em conta a influência do catolicismo na vida de Isabel, pois pesquisadores têm demonstrado que ela abraçou a causa da abolição com fervor religioso e fidelidade ao papa Leão XIII, aspecto que contribui para relativizar a suposta “rebeldia da princesa” em seus acenos ao abolicionismo.


Caminhando para a conclusão, vale reiterar que não há evidências de que Isabel tenha “sustentado” o quilombo do Leblon. Os relatos da época dão conta de que Seixas fazia entregas regulares de suas camélias na residência da princesa, mas a documentação parece não oferecer informações sobre como a regente contratava os serviços da chácara. Ou será que as camélias eram cortesias de Seixas a uma monarca amante de plantas? Também há relatos de que Isabel organizou eventos para angariar fundos para a causa abolicionista, mas não encontramos evidências de que os recursos fossem direcionados para o quilombo.


A respeito de como os quilombos eram mantidos pelo movimento abolicionista, a equipe do Projeto Detecta ouviu o historiador Luiz Gustavo Santos Cota, segundo o qual “havia uma engrenagem maior, uma rede de informações, de suporte político e financeiro que passava por diversos atores. E eram esses atores – que não a princesa – que de fato sustentavam o quilombo. Essa rede de atores se estendia inclusive para fora do Rio de Janeiro”.


Conclusão: PROBLEMÁTICO!


A equipe do Projeto Detecta confirmou a existência de um “quilombo” instalado numa chácara do Leblon. Não era o bairro inteiro que era um quilombo (como sugere a narrativa checada), mas uma propriedade localizada no bairro funcionava como "quilombo abolicionista", segundo categorização aplicada pela historiografia especializada. Nesse "quilombo" cultivavam-se camélias, símbolo do abolicionismo com o qual a princesa Isabel teria adornado seu vestido em uma ou outra aparição pública, revelando assim um aceno da regente à causa abolicionista. Contudo, não conseguimos encontrar qualquer evidência de que Isabel sustentasse o tal quilombo. Tudo indica que a princesa tinha boas relações com o proprietário da chácara, um rico capitalista português envolvido numa rede articulada pela Confederação Abolicionista. Essa organização estimulava fugas em massa e acobertava pessoas escravizadas que escapavam do cativeiro, uma tática que se tornou relativamente comum nos anos finais da escravidão e contribuiu para o desmantelamento do regime escravista. O mais provável é que, nesse contexto, por influência religiosa e política, a princesa tenha aderido de forma mais aberta à causa abolicionista apenas nos estertores da escravidão. Nos próximos artigos da série “Narrativas monarquistas” (confira os textos anteriores: #01, #02 e #03), a equipe do Projeto Detecta aprofundará as checagens sobre as relações da regente com o abolicionismo, o que dará ensejo para abordar a construção da imagem de Isabel como “redentora” dos escravos. Por ora, só resta concluir que se trata no mínimo de exagero e demasiada simplificação dizer que a princesa sustentava o quilombo do Leblon.


Pesquisa e redação: Pablo Bráulio

Este artigo também contou com a colaboração de Juliana Videira e Luiz Gustavo Santos Cota.


368 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page