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A violência doméstica e as aulas de História

Não podemos nos esquivar de uma dura verdade: enquanto estamos em distanciamento social, muitos de nossos alunos e alunas estão convivendo mais tempo com seus agressores ou testemunhando mais situações de violência dentro da própria casa. Diante desse cenário, surge uma questão: é possível pensar a violência doméstica dentro das aulas de História?

(Foto: Getty Images)

Segundo dados recentes, são registradas diariamente 233 agressões a crianças e adolescentes no Brasil. Em grande parte dos casos, o agressor é um parente próximo. São vários os tipos de violência praticados contra pessoas de até 19 anos, sendo o abuso sexual um dos mais comuns. E mais de 70% dos casos de violência sexual contra crianças acontece dentro de casa.


Vários especialistas e organizações têm alertado para o fato de que crianças e adolescentes podem estar mais expostos durante o distanciamento social. Reportagens do Zero Hora, Estado de Minas, G1 e outros veículos de comunicação abordam o tema sob vários pontos de vista e o prognóstico é sempre o mesmo.


A violência doméstica tem ainda outra face: as mulheres também estão submetidas a maior risco durante a pandemia, segundo um alerta das Nações Unidas. Quanto a isso, já temos dados alarmantes no Brasil. Estudos do Ministério Público do Estado de São Paulo e do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro mostram que houve, logo no início do distanciamento social, um expressivo aumento da violência doméstica com vítimas do sexo feminino – e estamos falando apenas de casos registrados.


A maior parte das agressões contra mulheres e feminicídios acontece dentro da própria casa da vítima. Qualquer violência ocorrida no convívio familiar também atinge crianças e adolescentes, mesmo que indiretamente, podendo gerar traumas, agressividade, ansiedade, depressão e problemas no desenvolvimento cognitivo. E todos sabem o quanto isso afeta o cotidiano das escolas.


A violência entre pessoas da mesma família costuma ser vista como um problema de “foro íntimo”, que deve ficar restrito ao ambiente doméstico e ser resolvido na esfera privada. É uma noção reforçada por ditados populares como “roupa suja se lava em casa” ou “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Mas essa visão vem sendo fortemente contestada. Nos últimos anos, temos acompanhado o surgimento de diversos movimentos para ampliar a visibilidade da violência doméstica, fortalecer as vítimas por meio de leis e organismos protetivos e não deixar os agressores impunes.


Minha intenção aqui é abordar o tema para além dessa dicotomia. Não tenho dúvidas de que a violência doméstica é um assunto que interessa a toda a sociedade. Mas, ao reconhecer sua dimensão pública, não podemos reduzi-lo a uma abordagem meramente jurídica, punitiva e estatal.


Violência doméstica ou violência patriarcal


Para refletir sobre o tema na sua relação com o ensino de História, proponho substituir a expressão “violência doméstica” por “violência patriarcal”, que também ajuda a pensar o problema como algo não restrito ao âmbito da privacidade. Não inventei essa expressão. Estou dialogando com uma teórica do feminismo chamada bell hooks, que diz assim:


“A violência patriarcal em casa é baseada na crença de que é aceitável que um indivíduo mais poderoso controle outros por meio de várias formas de força coercitiva. Essa definição estendida de violência doméstica inclui a violência de homens contra mulheres, a violência em relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo e a violência de adultos contra crianças. O termo ‘violência patriarcal’ é útil porque, diferentemente da expressão ‘violência doméstica’, mais comum, ele constantemente lembra o ouvinte que violência no lar está ligada ao sexismo e ao pensamento sexista, à dominação masculina. Por muito tempo, o termo violência doméstica tem sido usado como um termo ‘suave’, que sugere emergir em um contexto íntimo que é privado e de alguma maneira menos ameaçador, menos brutal, do que a violência que acontece fora do lar. Isso não procede, já que mais mulheres são espancadas e assassinadas em casa do que fora de casa. Além disso, a maioria das pessoas tende a enxergar a violência doméstica entre adultos como algo separado e diferente da violência contra crianças, quando não é. Com frequência, crianças sofrem abuso quando tentam proteger a mãe que está sendo atacada por um companheiro ou marido, ou são emocionalmente afetadas por testemunhar violência e abuso” (grifos meus).

A citação do livro O feminismo é para todo mundo é longa, mas fundamental, porque chama atenção para o fato de que a violência doméstica não é praticada apenas por homens, mas se apoia totalmente no sexismo, o que também podemos chamar de dominação masculina ou patriarcado, algo que orienta quase todas as nossas relações pessoais sem a gente nem perceber.


A escola e a violência patriarcal


A criação da maioria dos alunos e alunas para quem leciono está nas mãos de mulheres – seja porque a figura adulta masculina do núcleo familiar fica a maior parte do tempo fora de casa, porque ela é distante ou ausente ou porque ela simplesmente não existe (o que não é raro). Ainda assim, a violência patriarcal não deixa de estar presente no cotidiano de suas famílias, até porque é exigido dessas mulheres que substituam a autoridade paterna.


E o modo certo – aos olhos da sociedade – de substituir essa autoridade é pela força física. Já ouviu aquela expressão: “tem mãe que também é pai”? Pois é, ela supostamente pretende enaltecer as mulheres que não se limitam a ser “apenas” mães (como se fosse pouco!), mas no fundo não deixa de ser uma violência contra as mulheres.


O problema é que a escola também reproduz a lógica patriarcal. Keilla Vila Flor, uma professora de História entrevistada no podcast História Liberta!, aborda essa questão, relatando suas experiências pessoais no magistério. Ela descreve uma certa divisão de gênero entre professores, de acordo com a faixa etária dos estudantes, que exemplifica bem como o sexismo se manifesta na escola.


De fato, a maioria esmagadora das pessoas que leciona para crianças é mulher, o que a entrevistada associa à maternidade: a sociedade produz mulheres para serem mães e, portanto, a elas são incumbidas as tarefas relacionadas ao cuidado com as crianças. Nas etapas mais avançadas do ensino, a presença de homens no corpo docente aumenta.


Segundo o relato de Keilla, “a lógica social faz parecer [...] que só uma autoridade masculina vai conseguir dominar a rebeldia adolescente”. As vivências profissionais da professora corroboram o pensamento de bell hooks, pois evidenciam a crença de que uma suposta necessidade de medidas coercivas só pode ser atendida com atributos masculinos.


Para bell hooks, a questão da violência patriarcal não está dissociada dos debates que envolvem classe e raça: agressões contra crianças e mulheres brancas nos lares da classe média tendem a causar mais comoção do que agressões praticadas no ambiente doméstico de famílias negras e pobres. De maneira que, embora a violência patriarcal seja generalizada em nossa sociedade, não podemos ignorar que mulheres e crianças não brancas e moradoras das periferias estão numa condição de maior vulnerabilidade. E esse é o público das escolas públicas.


O ensino de História e a violência patriarcal

O papel do professor ou da professora de História começa por desenvolver em si próprio a consciência de que a violência patriarcal (ou doméstica, se preferir) se sustenta e se reproduz na nossa própria ordem social – na qual a escola está incluída.


Para mim, parece claro que o nosso trabalho envolve pensar a própria historicidade da família e do lar, considerar as relações pessoais de dominação e submissão e promover a formação de subjetividades fortes (empoderadas, como se diz). Acho que passa também por estudar mais a história das mulheres e das crianças, ler mais autoras (escritoras, filósofas, historiadoras etc., sobretudo as feministas), ouvir mais mulheres (nossas esposas, companheiras, mães, irmãs, colegas de trabalho, alunas e suas mães etc.), ouvir a molecada e dar mais abertura para ela se expressar, promover debates em que crianças e adolescentes consigam se ouvir e construir sua própria argumentação.


Equipes heterogêneas: uma possibilidade de trabalho com a História


Gosto muito de trabalhar com a sala de aula dividida em grupos. Eu defino os grupos. Num primeiro momento, isso pode soar autoritário. Professores experientes, que conhecem bem o comportamento da garotada, sempre me perguntam: “mas seus alunos não se rebelam?”


Sim, rebelam-se. Sobretudo quando eu conduzo o trabalho de forma atrapalhada e impositiva (é, professores sempre caem nessas armadilhas do poder). A formação dos grupos é um processo longo e quase sempre dolorido, mas procuro esclarecer a molecada sobre a necessidade de formar equipes heterogêneas, que procuramos não alterar ao longo de todo o ano letivo.


Logo no início do ano já começo toda uma preparação do trabalho, propondo algumas dinâmicas e diálogos que não só me subsidiam na definição dessas equipes como também ensejam a expressão da garotada e vão acostumando os mais aflitos com a ideia. O momento de revelar as equipes é muito esperado e inevitavelmente dramático.


O que causa mais protestos sempre é a mistura de meninas e meninos na mesma equipe. Procuro montar cada grupo mesclando estudantes com características variadas: facilidade/dificuldade com os estudos, extroversão/introversão, docilidade/rebeldia etc. Claro que eu não poderia deixar de lado o aspecto que mais divide a molecada: gênero.


Questões como diversidade, empatia, cooperação e solidariedade precisam ser o leitmotiv de todas as minhas aulas quando me proponho a organizar o trabalho didático dessa forma. Não podem ser questões operadas apenas no meu discurso. Precisam ser vivenciadas pelos estudantes.


Fazer adolescentes interagirem entre si sem considerar seus vínculos afetivos não seria uma atitude violenta? Pode ser. Afinal, é nessa fase que os laços entre pares se reforçam. Mas também é nessa fase que tais laços se desfazem, se refazem e se reorganizam com mais rapidez. Não deixa de ser violento obrigá-los a fazer as tarefas com pessoas que não sejam seus BFFs (best friends forever), mas o próprio ato de aprender contém sua dose de violência, pois implica sair da “zona de conforto” e realizar um movimento – nem sempre agradável – de se abrir ao novo e ao diverso. Vejo as equipes como parte substancial desse processo. Como eu disse, há todo um trabalho de preparação e acompanhamento. Não há nada de espartano na formação das equipes, e algumas adequações e concessões acabam sendo necessárias com o tempo. Assim tenho conseguido bons resultados pedagógicos.


Nas equipes, a molecada naturalmente se vê em situações de enfrentamento, que podem se desdobrar em aprendizagens fundamentais. Uma delas é evidente nos meninos, que são colocados num lugar em que devem interagir com as meninas em outros termos. Essa convivência dá a eles boas oportunidades de repensar essa relação.


Conflitos são inevitáveis. Isso está previsto. E eu, como professor, preciso mediá-los e aproveitá-los como matéria-prima para a construção dessas aprendizagens. Na maior parte das vezes, aprendo mais do que ensino. Mais legal do que ensinar é aprender junto.


É sempre difícil para um professor homem mediar um conflito envolvendo um menino e uma menina. Estou sempre na posição do homem. Não sou obrigado a dar razão a uma ou a outra parte, mas toda vez que procuro fazer com que o menino leve em consideração a fala de uma menina, há sempre a oportunidade de virar uma chavinha. E, se ela é virada, introduz equilíbrio numa relação que a molecada já vem construindo de forma hierarquizada.


O mesmo serve para nós, professores ou professoras, toda vez que nos esforçamos para levar em consideração o que nossos alunos e alunas dizem. Mas geralmente acreditamos que nossa função é só ensinar e não costumamos nos colocar à disposição de aprender com um aluno, esse “ser desprovido de luz”.


Mais horizontalidade em sala de aula


Professores e professoras que propõem relações mais horizontais são tachados de fracos pelos seus pares; e estudantes que não aceitam a hierarquia são vistos como “problema” e precisam ser submetidos a algum tipo de coerção, uma espécie de extensão da violência patriarcal, mesmo quando essa coerção não é aplicada por um homem. Muitos de nós estão dispostos a romper com a lógica autoritária, mas nem sempre conseguimos fazer a molecada sair de uma posição subalterna e se expressar mais livremente. Afinal, estamos lidando com subjetividades oprimidas, adestradas para serem dóceis e obedientes (ainda que não o sejam de fato e que alguns recorram à rebeldia e à indisciplina com frequência). Estamos lidando com crianças e adolescentes que se acostumaram com a ideia de que, na sala de aula, quem ensina é o professor, quem fala é o professor. Ao aluno cabe apenas respeitar, ficar calado e aprender (exceto uma parte que vai tentar o tempo todo subverter essa ordem, mas sempre com ferramentas precárias que só acabam trazendo prejuízos para si próprios). Quando o professor ou a professora propõe uma prática mais horizontal, a molecada não sabe o que fazer ou compreende a proposta como uma bela oportunidade para "bagunçar" ou ficar "de boa". Com 11 ou 12 anos, eu agiria do mesmo jeito.


O desafio para o professor e para a professora é proporcionar vivências em sala de aula que fortaleçam as subjetividades ali presentes, a fim de que estas possam se expressar e se engajar num trabalho didático produtivo sob a perspectiva da educação integral. Em sala, gosto de abordagens que dialogam com as “metodologias ativas”, sobretudo aquelas que se aproximam de uma aprendizagem a partir de problemas. Propor tarefas desafiadoras para que as equipes tentem resolver de forma colaborativa é um caminho que tenho buscado percorrer.


Historicidade: família, casa, gênero e dominação


Os conceitos de família e casa nem sempre foram os mesmos ao longo do tempo, assim como as relações entre as pessoas e os grupos sociais. Trabalhar com os alunos na perspectiva de evidenciar diferentes modos de existência através da história me parece um caminho que contribui para a reflexão, por parte dos estudantes, sobre sua própria existência.


Em sala, gosto de trabalhar a etimologia da palavra "família", e mostrar como ela deixou de designar um conjunto de coisas sob o domínio de um pater familias, na Roma antiga, para ganhar a conotação afetiva que tem hoje. Recentemente, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz escreveu um artigo sobre o ambiente doméstico e abordou os conceitos de lar e casa em diferentes épocas e culturas, discussão que pode ser trazida para a sala de aula.


Embora o patriarcado tenha sido a norma em praticamente todas as sociedades que surgiram desde a revolução agrícola, não podemos desconsiderar os períodos históricos em que estados poderosos foram governados por mulheres: Cleópatra, Nzinga, Elizabeth etc., uma discussão bastante atual para os tempos de pandemia, quando países liderados por mulheres têm se destacado no cenário internacional. A permanência da valorização dos homens nas sociedades desde a Antiguidade esconde o fato de que as características masculinas variam de acordo com as diferentes culturas. O mesmo vale para as características femininas e as relações entre as pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes. Tudo isso tem historicidade e pode ser tema de aulas de História muito bem amparadas pelos dispositivos curriculares.


Finalizando...


Questionar-se sobre as formas de dominação – de gênero, de raça e de classe – é algo que todo mundo sempre faz ou fez em algum momento da vida. Nosso papel, como professores e professoras, pode passar por fornecer subsídios históricos para que esse questionamento ganhe sentido e oriente a prática cotidiana das pessoas.


A construção coletiva do conhecimento histórico, em que um estudante ajuda o outro, pode levar não apenas a conquistas interessantes do ponto de vista didático, como também ao desenvolvimento de práticas cooperativas, solidárias e empáticas. O esforço de pensar os conceitos históricos a partir do ponto de vista do outro ou compreender a diversidade de possibilidades de resolver um problema pode gerar ganhos no convívio social.


Não sei se existem pesquisas que confirmam minhas hipóteses, mas acredito que, trabalhando com esse tipo de abordagem, criamos condições para meninas e meninos desenvolverem habilidades comunicativas e de relacionamento pessoal que lhes permitam agir de modo assertivo, propositivo e colaborativo diante dos conflitos e das injustiças. Com as aulas de História, a molecada pode desenvolver instrumentos para ter mais opções que não sejam apenas reproduzir ou se submeter a formas de dominação e opressão. Agradeço à Laura Moreira e à Juliana Videira. Este texto contou com a contribuição delas!

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