top of page
Foto do escritorPablo Bráulio

História da ditadura na sala de aula: o que fazer?

Atualizado: 25 de mai. de 2020

As imagens de protestos com pessoas pedindo intervenção militar nos dias de hoje (como as que reproduzimos em artigo anterior) causam consternação em professores e professoras de História, que acabam concluindo precipitadamente: falhamos. Mas será que o ensino de história da ditadura fracassou mesmo?


Vamos com calma! A coisa não é bem por aí. Se você atua como professor ou professora de História há mais de 10 anos, sem neuras! A culpa não é sua. Se você ensina História há menos tempo ou pretende ingressar na docência em breve, não jogue sobre seus ombros a responsabilidade de consertar essa encrenca na qual nos metemos.


E sem saudosismos! Embora sintamos as reverberações do passado em nossa vida atual, nem abril de 64 e nem maio-junho de 68 acontecerão novamente.

Passeata dos cem mil, 1968 (Foto: Evandro Teixeira/CPDoc/JB)

Neste, que é o quinto artigo da série sobre o ensino de história da ditadura civil-militar no Brasil, vamos complexificar um pouco a questão e propor reflexões para quem atua em sala de aula com a temática da ditadura. Antes de tudo, não devemos ter a ilusão de que podemos intervir diretamente na consciência dos/das estudantes! O caminho, acreditamos, é mais no sentido de oferecer-lhes instrumentos com os quais possam pensar e agir sobre referenciais políticos e temporais.


Complicou demais? É melhor continuar acreditando que a culpa é dos professores e professoras de História? Ainda não! Vamos partir de alguns dados concretos para pensar melhor sobre esse dilema.


Jovens e a história das ditaduras


Uma pesquisa realizada há alguns anos buscou produzir dados que pudessem fornecer indicações sobre a consciência histórica de jovens na América do Sul. A pesquisa abrangeu três países: Argentina, Brasil e Uruguai. Entre os diversos aspectos observados nessa pesquisa, destacaremos aquilo que nos interessa aqui: a percepção desses jovens sobre as ditaduras recentes ocorridas nos três países.

Gráfico mostra como jovens avaliam as ditaduras em seus países.

Os dados apurados na pesquisa revelam que jovens brasileiros apresentam rejeição mais fraca à ditadura do que jovens argentinos e uruguaios. Em busca de uma explicação para isso, um estudo decorrente dessa pesquisa aventa a hipótese de que, na Argentina e no Uruguai, é muito mais presente a discussão sobre os mortos e os desaparecidos do período ditatorial. Nesses países, há também mais mobilização de setores da sociedade em relação ao tema.


No Brasil, diferentemente, o processo de redemocratização passou por soluções conciliatórias que dificultaram o enfrentamento de questões colocadas pela ação do Estado brasileiro durante o regime militar, o que explicaria uma avaliação mais atenuante daquele período por parte da juventude de hoje.


O estudo mencionado acima recusa atribuir os dados levantados para o Brasil somente à escola e ao ensino de história; e opta por discutir a consciência histórica da juventude na intersecção entre cultura histórica e cultura política.


CULTURA HISTÓRICA


A gente não aprende História só na sala de aula. A gente tem contato com temas históricos em várias circunstâncias: ao visitar museus ou cidades diferentes, ao ver filmes, séries ou reportagens na TV, ao ouvir músicas ou programas de rádio, ao ler livros, jornais e revistas, ao navegar pela internet, ao jogar determinados games e até no bate-papo da esquina.


O ensino regular na sala de aula é só um dos vários momentos da vida por meio dos quais a gente vai formando, de modo compartilhado, alguma noção sobre o que cada época significa para nós.


Portanto, podemos dizer que as aulas na escola, os museus e as pesquisas acadêmicas feitas nos cursos universitários de História, assim como a mídia de um modo geral (imprensa, cinema, internet etc.) contribuem para a cultura histórica de uma comunidade. De maneira simples, podemos compreender essa cultura histórica como a relação que estabelecemos com a temporalidade e que usos fazemos do nosso passado.


CULTURA POLÍTICA


Ao longo da nossa vida, vamos adquirindo alguns comportamentos em relação às questões de natureza política. Vamos desenvolvendo uma compreensão sobre o que a política é e sobre as instituições de poder; vamos nos afeiçoando ou nos afastando de certas atitudes ou ideias políticas; vamos incorporando normas, dinâmicas, linguagens e convenções da esfera política; enfim, vamos nos posicionando e encontrando nossa maneira de estar nos jogos de poder, dominação e resistência, disputas partidárias, embates públicos etc.


Tudo isso acontece na relação social, no âmbito do que muitos pensadores chamam de cultura política. Podemos dizer que a cultura política é o conjunto de atitudes, normas, crenças, mais ou menos largamente partilhadas pelos membros de uma determinada sociedade ou grupo social e que têm a ver com fenômenos políticos.


E os professores e professoras de História?


Ok, o modo como percebemos o nosso passado ditatorial recente não se elabora apenas nas aulas de História. Nossas vivências pessoais, bem como a cultura histórica e a cultura política nas quais estamos imersos, e das quais participamos, também interferem no processo de apreensão dos conhecimentos sobre esse passado.


Mas qual o papel dos professores e professoras de História nisso? O ensino de História nas escolas pode contribuir, de algum modo, para que alunos e alunas não se tornem saudosistas tolos, negacionistas históricos e muito menos admiradores do autoritarismo ou defensores de regimes genocidas? Queremos acreditar que sim. Mas como?

Grafite de Mundano na rua da Consolação, São Paulo, 2019 (Foto: Instagram @mundano_sp)

O ensino de História molda a consciência de alunos e alunas?


Evidentemente, não se trata de usar as aulas para expor, de modo contundente, em longos monólogos repletos de exemplos, o quanto a ditadura foi cruel e malvada. Fazer isso é se entregar à guerra de narrativas e alimentar uma ilusão de que o ensino de história pode regular as consciências e comportamentos das pessoas. Muitos docentes fizeram isso nos anos 80 e 90, e hoje não é raro encontrarmos marmanjos e marmanjas de 40, 50 anos dizendo por aí que “tempo bom era na época dos militares”.


O ensino de História sempre foi apropriado por estados e governos no intuito de moldar as consciências em torno de algum modelo de sociedade. Já se tentou formar jovens patriotas, nacionalistas, obedientes e disciplinados ensinando história de um jeito. Já se tentou formar jovens críticos, democratas, participativos e cidadãos ensinando história de outro jeito. Se esses projetos já tiveram algum êxito, nunca conseguiram esconder suas fissuras. E a mobilização do ensino de História em prol desses modelos é uma história de fracassos.


Hoje, talvez haja pressão de instituições estatais e privadas para se formar jovens capacitados para o mercado, competitivos, talentosos, pró-ativos e empreendedores. Nesse contexto, até se questiona a necessidade da História no currículo da Educação Básica. Mas esse é um assunto para outro momento.


Atenhamo-nos ao fato de que o ensino de História ainda tem sua legitimidade. Se ele não serve ao Estado para moldar súditos ou cidadãos, ainda se demanda dele alguma formação no sentido de aprimorar a compreensão de jovens e adolescentes sobre a ditadura civil-militar. Mas como?


Professores (as) de História são historiadores (as)?


O papel de professores e professoras de História seria o mesmo de historiadores e historiadoras? Podemos até supor que haja alguma convergência nas contribuições dessas duas categorias para uma boa reflexão pública sobre a ditadura civil-militar no Brasil.


O historiador Rodrigo Patto Sá Motta já abordou os dilemas envolvidos no ato de pesquisar experências "autoritário-repressivas recentes" e a contribuição que os historiadores têm a oferecer. Alguns desses dilemas já foram tratados em outros artigos desta série (as memórias em disputa, as polêmicas políticas, a emergência de versões comprometidas com determinados projetos de poder etc.). A partir da abordagem de Motta, poderíamos concluir que historiadores e historiadoras devem estar atentos a pelo menos duas coisas:


1) Um olhar apurado para exercer a crítica dos documentos e testemunhos a fim de evitar “apropriações ingênuas dos argumentos presentes nas fontes, que às vezes são tomadas como expressão pura e simples da verdade”.


2) Os debates acumulados na tradição historiográfica, que “propiciaram aperfeiçoamento de metodologia de pesquisa, estimularam o cuidado na utilização de conceitos. Evitar a tentação de generalizações abusivas, modelos abstratos. Atentar às evidências e às singularidades”.


Os mesmos “conselhos” podemos aplicar a professores e professoras da Educação Básica. Mas esses "conselhos" estão muito longe de ser suficientes para a labuta diária com um bando de adolescentes na sala de aula.


O preparo acadêmico do professor ou da professora da Educação Básica passa necessariamente por encontrar caminhos que possam sensibilizar o/a estudante para o tema, produzir algum tipo de aproximação do “objeto de estudo”, conectá-lo com a vida; o que nem sempre acontece no âmbito da pesquisa acadêmica, onde os pesquisadores são treinados para destrinchar de forma (quase) cartesiana esses objetos de estudo, mantendo com eles um certo distanciamento a fim de que não se comprometam a “objetividade” e os rigores exigidos pelo “método científico”.


Caminhando e ensinando sobre a história da ditadura no Brasil


Os currículos escolares são tradicionalmente organizados cronologicamente, modelo corroborado pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Essa organização curricular reserva os últimos anos de cada etapa de ensino da Educação Básica (ou seja: o 9º ano do Ensino Fundamental e o 3º ano do Ensino Médio) para o ensino da história contemporânea, o que inclui a ditadura civil-militar.


Não é raro que professores e professoras de História se queixem de não conseguir “dar todo o conteúdo”. Sendo o regime militar algo tão recente, costuma ser deixado mais para o fim do ano letivo. Assim, é comum conceder um tempo mais curto e mais corrido para trabalhar os conhecimentos concernentes a esse período da história brasileira. Talvez seja por isso que jovens no Brasil conheçam mais sobre Idade Média do que sobre a ditadura civil-militar no país, conforme revelado em estudos recentes.


A isso junta-se o fato de a ditadura ser um “tema sensível” (por todos os fatores que já tratamos ao longo desta série, especialmente no terceiro e no quarto artigos), causando certo desconforto em alguns professores e professoras de História, que muitas vezes se apoiam numa visão antiquada de que sua disciplina não deve se debruçar sobre assuntos tão contemporâneos.


Contudo, além da exigência expressa em currículos escolares, o estudo da história da ditadura na Educação Básica oferece oportunidades de pensar o Brasil contemporâneo, debater categorias do universo político (poder, constituição, autoritarismo, resistência, direitos civis etc.) e refletir sobre a memória individual e coletiva.


Para o Ensino Fundamental, a BNCC reúne quatro habilidades associadas à unidade temática denominada “Modernização, ditadura civil-militar e redemocratização: o Brasil após 1946”. São elas:


  • Identificar e compreender o processo que resultou na ditadura civil-militar no Brasil e discutir a emergência de questões relacionadas à memória e à justiça sobre os casos de violação dos direitos humanos (EF09HI19).

  • Discutir os processos de resistência e as propostas de reorganização da sociedade brasileira durante a ditadura civil-militar (EF09HI20).

  • Identificar e relacionar as demandas indígenas e quilombolas como forma de contestação ao modelo desenvolvimentista da ditadura (EF09HI21).

  • Discutir o papel da mobilização da sociedade brasileira do final do período ditatorial até a Constituição de 1988 (EF09HI22).


Podemos desmembrar a primeira habilidade em duas: uma relacionada à compreensão das causas do golpe e da montagem do Estado ditatorial; outra relacionada ao tema dos direitos humanos a partir das questões suscitadas pela repressão. A segunda habilidade foca os embates políticos travados durante o regime e se conecta com a terceira habilidade, que sugere abordar a política econômica do regime em contraposição às demandas de grupos étnicos. Por fim, a quarta habilidade propõe uma discussão sobre o papel da sociedade na redemocratização.


Assim, a BNCC define habilidades que os/as estudantes devem desenvolver ao longo do 9º ano no que se refere ao tema da ditadura civil-militar, mas o documento não determina como essas habilidades serão desenvolvidas. É aí que a professora ou o professor entra em ação. E há muitas possibilidades de trabalho.

Antonio Dias, Faça você mesmo: território liberdade, 1968

Não pretendemos aqui ser prescritivos. Não existe nenhuma sequência didática pronta para garantir uma aprendizagem adequada sobre a história da ditadura no Brasil. Mas há muitos estudos que oferecem pontos de partida para se planejar uma aula sobre o tema. Basta uma busca na internet para encontrarmos planos de aula que inspiram e propõem caminhos promissores.


Maria Hermeto Sá Motta, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, foi entrevistada em 2014 para falar sobre o ensino da história da ditadura e enfatizou a necessidade de se adequar o tema às faixas etárias. Para ela, existem muitas possibilidades de trabalhar a história da ditadura com a garotada do Ensino Fundamental e a historiografia sobre o tema não é a única referência.


Em aula inaugural oferecida ao projeto Memórias Reveladas, Francisco Carlos Teixeira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, problematizou a questão da "objetividade" para tratar da história da ditadura em sala de aula e destacou o papel da memória na aprendizagem sobre o tema.


Estimular estudantes da Educação Básica a entrevistar pessoas mais velhas que viveram nos tempos da ditadura e trazer as várias percepções para um debate em sala de aula é fundamental para que a molecada possa compreender pontos de vista diferentes, exercitar a empatia, apreender a historicidade e exercer uma crítica sobre os vários testemunhos encontrados.


A professora do Colégio de Aplicação da UFRJ, Alessandra Carvalho, sugere que docentes proponham abordagens mais amplas do que as comumente oferecidas pelos livros didáticos quando forem tratar do regime militar. Para ela, há uma dificuldade de trabalhar abordagens que contrapõem democracia e ditadura, pois a democracia é mais uma experiência do que um conceito: “em que situações dentro da escola o aluno vive essa democracia?”, provoca a professora.


É preciso pensar essa aprendizagem na prática, por meio de vivências e atividades produtivas que possibilitem aos/às estudantes refletirem sobre a democracia e a liberdade não como conceitos, como coisas absolutas, mas como práticas e exercícios cotidianos, a fim de que não se rendam facilmente a soluções autoritárias. Escrever biografias, promover exposições fotográficas, compor canções, produzir memes, participar de oficinas de criação são alguns recursos que potencializam essas aprendizagens.


O fato de a ditadura ser um tema ainda muito presente nos dias de hoje pode ser utilizado como mote para uma boa aula no Ensino Médio. Apresentar aos alunos algumas representações atuais, debates e análises ensejadas pelos aniversários do golpe, é um bom ponto de partida para discutir alguns aspectos do regime ditatorial. Nessa perspectiva, o Laboratório de Ensino e Material Didático da Universidade de São Paulo (LEMAD/USP) disponibiliza uma sequência didática que pode ser adaptada para as diversas realidades escolares.

Já o site História da Ditadura disponibiliza planos de aula, propostas de oficina e outros recursos que dialogam com o universo infanto-juvenil numa perspectiva de estimular a autonomia dos e das estudantes no contato com conhecimentos históricos sobre o período ditatorial.

Parêntese: "estimular a autonomia" não significa deixar adolescentes abandonados no labirinto de versões e memórias sobre a ditadura. Frente aos debates do presente, o professor ou professora pode e deve se posicionar. Não dá para um profissional da área ser conivente com os falseamentos e negacionismos históricos.

A diversidade de possibilidades para trabalhar o tema em sala de aula se reflete nos quase cinquenta planos de aula disponibilizados pela Olimpíada Nacional em História do Brasil (ONHB). Organizada desde 2009 pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a ONHB oferece cursos online anuais voltados para professores e professoras de História.


A cada ano o curso tem um tema diferente e quem o realiza deve elaborar um plano de aula sobre esse tema. Em 2014, por ocasião do aniversário do Golpe de 64, o tema do curso foi a ditadura civil-militar. Os organizadores selecionaram os melhores planos de aula e disponibilizaram no site da ONHB.


Esses planos revelam uma variedade de experiências docentes, contemplam objetivos diversos e propõem uma gama bastante interessante de documentos e fontes históricas para trabalhar a história da ditadura com adolescentes dos níveis fundamental e médio da Educação Básica.


Como se vê nas várias propostas e estudos mencionados, a produção historiográfica não deixa de ser importante, mas não a única referência para professores e professoras de História atuarem em sala de aula. Além disso, ainda que os livros didáticos estejam cada vez melhores, incorporando os ganhos da produção acadêmica, é preciso ir além dos compêndios.


Muitos caminhos possíveis passam por abrir o diálogo com estudantes e sua comunidade; passam pela proposição de vivências que mobilizem a garotada, que coloquem jovens e adolescentes numa posição ativa no processo de construção do conhecimento sobre a ditadura.

 

Estes são os sete artigos que compõem a série sobre ensino de história da ditadura no Brasil:






178 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page