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Virgem de Guadalupe: um olhar sobre a religiosidade mexicana após a conquista

Atualizado: 5 de mar. de 2020

“Virgem de Guadalupe, Mãe das Américas, te pedimos por todos os bispos, para que conduzam os fiéis por caminhos de intensa vida cristã, de amor e de humilde serviço a Deus e às almas.” (Oração do papa João Paulo II a Nossa Senhora de Guadalupe. México, 1979).

A Virgem de Guadalupe é um importante símbolo da história da nação mexicana e da religiosidade de sua população. Tida como padroeira do México e consagrada pelo papa João Paulo II, no ano de 1979, Padroeira da América Latina, Nossa Senhora de Guadalupe atrai todos os anos milhões de peregrinos à Basílica do México para a sua adoração. Nesse sentido, tendo em vista a importância histórica da devoção da Virgem de Guadalupe, discutirei três questões a ela relacionadas: 1) a origem de sua devoção; 2) os mistérios de seu manto; e também comentarei aspectos da 3) religiosidade mexicana. Para tanto, me basearei no documentário assistido e analisado, intitulado: Virgem de Guadalupe: entre a fé e a razão.


1) A origem da devoção da Virgem de Guadalupe

De acordo com o documentário, a origem da veneração de Nossa Senhora de Guadalupe está relacionada à sua aparição no monte Tepeyac – localizado na antiga Cidade do México. O relato da aparição faz parte da tradição oral e também se encontra registrado no Nican Mopohva, escrito em língua mesoamericana – Nahuatl - em meados do século XVI e cuja autoria é atribuída ao indígena Antonio Valeriano.

Segundo o relato, em dezembro de 1531 teria a Virgem de Guadalupe aparecido, no monte Tepeyac, ao nativo Juan Diego e solicitado que ele comunicasse ao bispo de que no local deveria ser construído um templo para a sua devoção. Juan Diego, ao comunicar ao bispo Juan Zumárraga o ocorrido, foi incumbido por este de trazer algo como prova de sua alegação. Dessa maneira, quando Diego retornou ao monte, a Virgem pediu para que ele carregasse seu poncho de flores – raras naquela região em temporada de inverno – e as mostrasse para o bispo como prova. Novamente em contato com Zumárraga, Juan Diego abriu o seu poncho para mostrar as flores. Todavia, algo mais extraordinário acontecera: além das flores, o poncho de Diego trazia gravada a imagem da Virgem de Guadalupe. Desse modo, essa teria sido a origem assim como o motivo da devoção da imagem.

Para Mircea Eliade, algo que manifesta o sagrado – uma hierofania – é um documento histórico, posto que remete a um momento bastante particular: “É sempre numa certa situação histórica que o sagrado se manifesta” (ELIADE, 1998, p. 9). Nesse sentido, o evento da aparição de Guadalupe e o registro de sua imagem se relacionam a um momento bem específico da história do México e da América espanhola. Na ocasião da aparição, século XVI, o território americano que hoje constituí o México assim como a sua população nativa estavam em pleno processo de colonização pelos espanhóis.

Desse modo, sabemos que uma das justificativas que fundamentou a colonização da América foi a expansão da fé cristã. Nesse ponto, é interessante comentar que um dos motivos que instigou Colombo a empreender sua viagem às Índias, que acabou resultando na descoberta da América, foi justamente a disseminação do cristianismo (TODOROV, 1983). Dessa maneira, diante desse contexto de propagação da fé cristã, o fenômeno de aparição da Virgem de Guadalupe a um nativo no monte Tepeyac seguido do culto de sua imagem foram extremamente importantes para a conversão dos povos nativos dessa região da América espanhola.


2) Os mistérios em torno de seu manto

De acordo com o documentário, o poncho que traz a imagem da Virgem, conhecido como Manto de Guadalupe, além de ter se constituído como objeto de grande adoração, por materializar a ocorrência de um milagre, também foi e tem sido um objeto que suscita diversos questionamentos e investigações. Esse cenário de discussões, segundo o vídeo, tende a opor aqueles que afirmam ser a imagem fruto de um milagre e aqueles que julgam ser a pintura resultada de criação humana. Dessa maneira, os mistérios de seu manto estão associados às tentativas de se explicar a sua verdadeira origem, ou seja, se a imagem que nele está gravada teria sido de fato obra de criação divina.

Segundo o documentário, o primeiro ponto que é alvo de discussões diz respeito às fontes que relatam a aparição. O já mencionado Nican Mopohva, escrito por Antônio Valeriano, indígena, governador e aristocrata da Cidade do México, se trata da principal fonte escrita do século XVI que relata o evento. Todavia, sua veracidade é questionada uma vez que a sua produção remete às décadas de 1560 e 1570, ou seja, vários anos após o ocorrido. Além disso, a fonte não consiste no documento original, mas sim em uma cópia.

Por motivo do século XVI apresentar poucos vestígios escritos acerca da aparição da Virgem, ele ficou conhecido por Século do Silêncio. No entanto, esse termo não é totalmente aceito. No documentário, o padre José Luis Guerrero alega que o silêncio em torno da imagem de Guadalupe ao longo do século XVI foi apenas o silêncio das autoridades espanholas. Todavia, o ocorrido era motivo de comentários por parte da população nativa.

Além disso, segundo o documentário, todo o debate sobre o Século do Silêncio veio a alcançar mais evidência no ano de 1995, quando foi descoberto o códex 1548. Esse documento escrito, que consiste em um pergaminho que conta acerca da aparição da Virgem, foi alvo de intensas investigações interdisciplinares – historiadores, químicos, engenheiros etc. - e promoveu vários questionamentos. Para muitos pesquisadores o códex põe fim ao chamado Século do Silêncio. Para outros ele merece mais estudos a fim de que melhor se esclareça a sua origem e posse.

Conforme o vídeo assistido, o segundo ponto de questionamento se refere ao fato do Frei Juan de Zumárraga, um dos protagonistas do episódio da aparição, não ter deixado nada por escrito acerca do ocorrido. Além dessas indagações no referente às fontes que relatam a aparição, o documentário também destaca as dúvidas e as investigações em torno do próprio poncho de Juan Diego.

De acordo com pesquisas de pintores e restauradores renomados, o poncho que carrega a imagem da Virgem, que se trata de uma vestimenta típica dos nativos do território do México, feito de fibras de um cacto típico da região, é um material totalmente inapropriado para pintura. Já as pesquisas de Miguel Cabrera apontam para a não preparação do tecido para receber a pintura. Dessa maneira, ambas as pesquisas favorecem a ocorrência do milagre.

Todavia, em fins dos anos 1970, pesquisas empreendidas por dois estadunidenses viriam a suscitar dúvidas. Por meio de fotografias com filtro infravermelho, esses pesquisadores chegaram à conclusão de que a imagem de Guadalupe teria sido de fato plasmada no poncho e de que os pigmentos que compõem a imagem seriam de origem desconhecida. Todavia, os resultados também alegavam que na imagem havia elementos adicionados posteriormente, como, por exemplo, o terço, as estrelas, os anjos, entre outros. Como argumento, os defensores do milagre ponderam que a imagem plasmada pela Virgem sem dúvidas recebera retoques e restaurações posteriores. Além do mais, muitos são os que criticam a tecnologia empregada na pesquisa.

Por fim, outro ponto que é alvo de pesquisas e que fomentam os mistérios em torno da imagem de Guadalupe diz respeito aos seus olhos. De acordo com o vídeo, fotógrafos, engenheiros de programação, médicos e demais pesquisadores, teriam identificado figuras de aspecto humano refletidas nos olhos da Virgem. Estudos definem ser essas figuras a imagem de um indígena, a de um busto humano, como também a de um homem barbado.


3) Aspectos da religiosidade mexicana

O relato de aparição da Virgem de Guadalupe remete a um contexto histórico bastante particular, início do século XVI, no qual a América tinha sido recentemente descoberta pelos europeus, e em cujo território estava acontecendo contatos e trocas entre culturas totalmente distintas. Dessa maneira, por mais que o colonizador espanhol objetivasse dominar e explorar a América e os seus povos, isso não significa que ele, de maneira consciente ou inconsciente, não se apropriou e ressignificou elementos culturais desses povos.

A constatação desses contatos pode ser feita por meio da análise de aspectos formadores da sociedade mexicana. Um desses aspectos diz respeito à sua religiosidade. Se por um lado a religião do colonizador, a cristã, foi a que imperou sobre o México, por outro ela não foi unicamente a religião imposta pelo colonizador aos povos nativos, mas sim a religião disseminada aos povos do território mexicano, e por isso ressignificada e transformada. Desse modo, podemos afirmar que o que vai caracterizar a religiosidade mexicana será a presença tanto de elementos dos povos europeus quanto de elementos dos povos nativos. Prova disso é o próprio episódio de aparição da Virgem de Guadalupe.

A Virgem de Guadalupe nada mais é do que a Virgem Maria, mãe de Jesus Cristo e por isso tida como santa pelo catolicismo. Segundo o relato, a sua aparição se deu no monte Tepeyac. De acordo com Lidiane Niero, em seu artigo intitulado A construção sócio-histórica de devoção a Nossa senhora de Guadalupe, antes dos espanhóis conquistarem a América, o monte Tepeyac já era local de intensa atividade religiosa por parte dos nativos, posto que ali houvesse um templo erguido em homenagem a deusa asteca Tonantzin – “ Nossa Mãe”.

“Mãe, rainha e deusa dos mexicanos, a Virgem de Guadalupe se chamava Tonantzin, entre os astecas, antes que o arcanjo Gabriel pintasse sua imagem no santuário de Tepeyac.” (GALEANO, 2015, p. 109).

Ainda de acordo com o relato, a Virgem católica não aparece para nenhum espanhol ou europeu, mas sim para o indígena Juan Diego. Além disso, segundo Mircea Eliade: “O sagrado se manifesta sempre através de alguma coisa” (ELIADE, 1998, p. 31), em todo o caso, uma coisa até então profana. Desse modo, outro elemento nativo presente no relato, o mais notável e o mais misterioso, é o poncho de Juan Diego. Como já mencionado, o poncho era um objeto típico dos povos nativos do México, por eles utilizado como capa ou como suporte para guardar outros objetos. E foi justamente nesse poncho que a Virgem cristã gravou a sua imagem. Essa imagem, por mais que traga elementos do catolicismo europeu: anjos, manto da Virgem, terço, entre outros, é a imagem de uma santa morena de olhos amendoados – traços típicos dos nativos.

Dessa maneira, a Virgem de Guadalupe é um símbolo da colonização da América pelos espanhóis, mas é também um símbolo do contato entre os europeus e os nativos. Durante o período da colonização, seu culto foi o que de fato uniu, religiosamente, os povos da Nova Espanha. Mas se a colonização espanhola tinha como uma de suas bases o cristianismo, e se o culto da Virgem de Guadalupe veio a facilitar a colonização por meio da conversão dos nativos, a Santa católica também foi fundamental para que a população colonizada se revoltasse contra seus colonizadores. Nesse sentido, Nossa Senhora de Guadalupe foi um dos grandes estandartes do processo de independência do México no começo do século XIX:

“Fervor da revolução, paixão da religião; os sinos repicam na igreja de Dolores, o padre Hidalgo chama para a luta e a Virgem mexicana de Guadalupe declara guerra à Virgem espanhola dos Remédios. A Virgem índia desafia a Virgem branca; a que escolheu um índio pobre na colina de Tepeyac marcha contra a que salvou Hernán Cortez da fuga de Tenochtitlán. [...] Agora a Virgem de Guadalupe avança matando pela independência do México.” (GALEANO, 2015, p. 109-110).

Diante dessa importância da Virgem de Guadalupe para a história da nação mexicana, não é de se surpreender com o fenômeno da fé em torno de sua imagem e da áurea de mistério que envolve o seu manto. Não é por acaso que, tal como foi visto e discutido, os mistérios de sua imagem despertem grande interesse por parte de vários pesquisadores.

Para Mircea Eliade, por mais que uma hierofania pertença a um dado momento histórico, isso não destrói a sua universalidade (ELIADE, 1998, p. 9). Prova disso é a veneração da Virgem de Guadalupe. Sua aparição se deu em princípios do século XVI, e seu culto sofreu diversas transformações ao longo do tempo, no entanto, até hoje, cinco séculos depois do evento, a fé em torno de seu manto mobiliza milhões de pessoas.

Além disso, assim como a Virgem de Guadalupe reuniu nativos e europeus para a sua veneração no período colonial, no vídeo podemos constatar que hoje ela também reúne pessoas de fé e pessoas de ciência em um mesmo ponto: para todos os entrevistados, por mais que avanços tecnológicos e estudos interdisciplinares promovam melhoras nas pesquisas em torno de seu manto, uma coisa é certa, a ciência jamais interferirá na fé que muitos depositam em Nossa Senhora de Guadalupe.

“Ano após ano acode o povo a Tepeyac, em procissão, Ave Virgem e prenhe, Ave donzela parida, sobe de joelhos até a rocha onde ela apareceu e a gruta de onde brotam as rosas, Ave de Deus possuída, Ave de Deus mais amada, bebe água de suas fontes, Ave que a Deus fazes ninho, e suplica amor e milagres, proteção, consolo, Ave Maria, Ave, Ave.” (GALEANO, 2015, p.

109-110).

REFERÊNCIAS:

Virgem de Guadalupe - Entre a Fé e a Razão. Documentário disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=U0A013x-LmI >. Acesso em 26 de novembro de 2017.

ELIADE, Mircea. Aproximações: estrutura e morfologia do sagrado. In: Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1998. (p. 7-38).

GALEANO, Eduardo. A Virgem de Guadalupe contra a Virgem dos Remédios. In: Mulheres. Porto Alegre: L&PM, 2015. (p. 109-110).

NIERO, Lidiane. A construção sócio-histórica de devoção a Nossa senhora de Guadalupe. In: Revista Sacrilegens. Disponível em < http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2012/04/9-1-8.pdf >. Acesso em 26 de novembro de 2017.

TODOROV, Tzvetan. A descoberta da América. In: A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1983. (p. 3-13).

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